[f i l m e s d o c h i c o]

31 de out. de 2005

Mostra de Cinema de São Paulo: rapidinhas 10



Mistérios da Carne , de Gregg Araki.

Há alguma poesia em mais uma tentativa de mergulho de Araki no quê marginal das pessoas comuns. A melancolia que o diretor empresta a suas personagens diferentes parece legítima, mas existe um hiato quando a questão é o que dizer. O mistério proposto pela trama é o que de menos importa. É o caminho para chegar na sua solução que revela os processos íntimos dos dois protagonistas.



A Criança , de Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne.

Os Dardenne têm um talento inegável para filmar o fatalismo, a tragédia, a amoralidade. A questão talvez seja que seu cinema imediato, seu ultra-realismo siga uma fórmula que está cada vez mais desgastada. A Criança, como os outros títulos da carreira da dupla, persegue o confrontamento entre o homem e o inevitável, mas desta vez não há a mesma tristeza pelo conformismo que em Rosetta (1999), de longe, o melhor e mais redondo filme da dupla. O drama não parece mais tão urgente, as personagens parecem presas a um modelo cansado de marginalidade (leia-se: para personagens à margem e não, bandidos); as idéias já não são mais tão fortes.



Tirando o Véu , de Angelina Maccarone.

Drama econômico que, tirando algumas boas idéias (de amarração, sobretudo), é filmado de maneira bem convencional, com direito a alguns clichês cansativos. Há uma idéia bem maniqueísta de como "o inimigo" deve ser: amoral, agressivo física ou verbalmente. O melhor é não ressaltar o "exotismo" da protagonista iraniana. Visto na FAAP, na companhia do Marcelo Valletta e da Ana Paul, que na noite anterior, além da cerveja e do caldinho, me proporcionaram ver o belíssimo A Palavra (1955), do Carl Dreyer, e dois curtas raros: Film (1965), de Alan Schneider, único filme escrito pelo Beckett, último trabalho do Buster Keaton, e Le Gros et le Maigre (1961), um dos primeiros Polanski.

30 de out. de 2005

Mostra de Cinema de São Paulo: rapidinhas 9



Os Canibais , de Manoel de Oliveira.

Um conto popular vira musical operístico. Manoel de Oliveira, trabalhando com o absurdo, consegue resultados esplendidamente visuais e, mais uma vez, arranha com dor a carne da burguesia. O amor resiste aos obstáculos? Os interesses pessoais sobrepujam o amor, a ética? A última cena, onde o cineasta se permite destruir a última ligação do filme com o factual, algo que pode mesmo ser extremamente desprezível, é o ponto final mais adequado para uma fábula de mestre.



O Fim do Mundo/Namorados , de Shiori Kazama.

O velho conflito do jovem com suas metas, com seu futuro. Personagens perdidos no meio da metrópole, sem saber muito bem o que fazer com suas vidas e tentando se apegar a algo que se pretende sólido. Algumas cenas despertam certo interesse, mas a poesia que se tenta nunca se consuma muito bem.



Marcas da Violência , de David Cronenberg.

A sua família é você quem escolhe. Tom Stall escolheu sua parceira e com ela teve dois filhos. E nada vai fazer com que ele desista da família dele. Nada que venha de fora, nada que venha de dentro. Muita gente tem chamado de um Cronenberg "limpo", mas, na verdade, é um dos filmes mais bem dirigidos do diretor, que consegue um crescendo aterrorizante com muita sutileza. Os momentos de riso, que a platéia fez questão de multiplicar, são um pouco incômodos. O filme, a meu ver, funcionaria plenamente se fosse completamente duro, mesmo assim não há demérito.



Cinema, Aspirina e Urubus , de Marcelo Gomes.

Talvez pelo sotaque, pelas expressões conhecidas, pela cultura muito próxima. Mas provavelmente por muito mais que isso. O longa de estréia de Marcelo Gomes é o melhor filme brasileitro do ano e um dos melhores filmes da Mostra. A história, simples, ganhou um dos roteiros mais bem acabados dos últimos tempos e uma caprichadíssima fotografia, que nunca se exalta no filtro e ganha pontos com a câmera criativa e os belos quadros que promove, competência presente em todas as searas aqui. João Miguel, apesar de fazer o "nordestino simpático" que já nos conquistou em muitos filmes com outros atores tão talentosos quanto, está perfeito no papel e é dono da melhor cena-solo do filme. É um filme que não busca atenção para si e isto faz dele muito maior do que muita coisa que surge por aí.



Be Movies: programa 2 , de Khavn.

Tosco, tosco e de muito mau gosto. As sinopses indicavam curtas de terror, mas a coletânea de filminhos aqui caberia mais na definição de trash. Khavn não tem muito a dizer, então, busca o choque pela violência, sexo e podreira. Os filmes, que sempre começam na mesa de jantar de uma família filipina composta por um pai psicopata, uma mãe maluca, uma filha dadeira, um filho grandão e bobo, um bebê-anão e um morto, são muito mal feitos, num digital vagabundíssimo, com zero de coerência. As piadas funcionam muito pouco. O melhorzinho é o programa de TV da dona-de-casa.

29 de out. de 2005

Mostra de Cinema de São Paulo: rapidinhas 8



Aniki-bobó , de Manoel de Oliveira.

Bem, não vou me prolongar muito. Não há quase nada a dizer. O filme é lindo, encantador e, quer se queira ou não, já lança vários dos olhares sobre o mundo que nós vemos (bem mais elaborados, obviamente) nos filmes mais recentes de Manoel de Oliveira. Curioso foi ouvir comentários sobre como o filme era engraçado, o que ele certamente é, mas esta pérola, que se considera o marco zero do neo-realismo (essas coisas são sempre questionáveis), é muito mais do que um filme bonitinho. É um filme sobre o mundo, sobre confrontar-se, sobre crescer.

500 Almas , de Joel Pizzini.

Belo filme de Pizzini, que é extremamente carinhoso com a apresentação dos remanescentes da tribo Guató, que sobrevivem no Pantanal Mato-grossense. O documentário é intercalado por aparições de Paulo José, que nas peles de generais, juízes e religiosos ajuda a compor o histórico do povo, que foi considerado extinto por quase uma década. Algo que eu pensei que não fosse funcionar, mas que se revela bem eficaz a cada nova intervenção. A fotografia, a cargo de Mário Carneiro, que assinou vários filmes do Cinema Novo, é um dos pontos altos do filme, que peca apenas porque muitas das cenas onde há sobreposição de sons ficam incompreensíveis.

Caminhão Cinza Pintado de Vermelho , de Srdjan Koljevic.

Um homem daltônico que acaba de sair da cadeia e uma roqueira revoltada que descobre que está grávida. Os cenários são as estradas das repúblicas da antiga Iugoslávia, em 1991, quando a guerra civil começava a esfacelar o país. Enquanto surge uma história de amor cheia de piadinhas dentro da boléia do caminhão, a dupla cruza os mais diferentes grupos étnicos e políticos, mas não percebe muito bem o que está acontecendo. O diretor faz de tudo para reforçar este clima away, dando características extremamente simpáticas para as personagens, que, mesmo quando mergulhados na crise do país, estão completamente alheios ao contexto. A brincadeira fica forçada porque as idéias até são boas, mas sua tradução nunca funciona plenamente.

P.S.: notas de zero a dez para os filmes da Mostra, aqui.

28 de out. de 2005

Mostra de Cinema de São Paulo: rapidinhas 7



Cine-fragmentos , de Alain Cavalier.

Coleção de recortes do cotidiano de Cavalier, captados ao longo de dez anos, costurados com eficiência a ponto de criar várias historietas, principal linha narrativa que o filme persegue. O diretor não tem pudores em mostrar sua intimidade e a da família, às vezes parecendo até ofensivo com sua esposa.



Vento e Areia , de Victor Sjöström.

Sjöström chega a Hollywood amadurecendo todas as idéias que exercitou ao longo dos anos filmando na Suécia. Um filme com uma composição visual invejável, tanto na fotografia, nas truncagens, quanto nos efeitos visuais, capaz de criar até ciclones artificiais. Uma obra-prima, eu diria. Lilian Gish, excepcional, mostra porque foi uma das poucas estrelas que ultrapassou os limites do cinema mudo.



O Inferno , de Danis Tanovic.

Uma família para a qual tudo deu errado. As histórias paralelas das três irmãs ganhou tratamento impiedoso do roteirista Krzysztof Piesiewicz, traduzido com fidelidade por Tanovic, que acerta na fotografia, na montagem e na música aterrorizante. A seqüência em que Emmanuelle Béart segue o marido até um hotel é magnífica, mas há um punhado de grandes cenas e muitas boas interpretações. O filme é o segundo da trilgia baseada em A Divina Comédia, de Dante, que seria dirigida pore Kieslowski. O primeiro foi o irregular Paraíso, de Tom Tykwer.




Crime Delicado , de Beto Brant.

Primeira bola fora de Beto Brant, baseada num texto muito pretensioso e pouco convicente de Sérgio Sant'Anna, que tenta incorporar a arte (ou as artes) à, digamos, essência da vida. Esta preocupação é o eixo central do roteiro, que deixa escapulir, talvez conscientemente, uma história mais consistente para o protagonista. Os intermezzos com as encenações de teatro são longos demais para um filme tão curto. E a melhor cena - quem diria? - é a protagonizada pelo intragável Cláudio Assis, diretor de Amarelo Manga, que está excelente (e parece bêbado).

27 de out. de 2005

Mostra de Cinema de São Paulo: rapidinhas 6



O Território , de Aron Gauder.

Divertidíssimo, com um humor bastante em voga, unindo sarcasmo e crítica política, com público-alvo inegável: o adolescente. A história é bem boba, mas há dezenas de cenas engraçadíssimas. Sim, parece South Park. Aliás, parece mais Terrance and Phillipe. A técnica de animação (perdoem-me por ser completamente leigo nisso) é deliciosa, bastante diferente dos filmes feitos do outro lado do oceano.



Palindromes , de Todd Solondz.

Todd Solondz tinha meu apreço. Bem-Vindo à Casa de Bonecas (1996), filme sobre os estranhos e os espaços que eles encontram pelo mundo, era um belo ensaio do que vinha por aí. E eu realmente gosto de Felicidade (1998), que traz o incômodo à superfície embora muitas vezes se recorra à armadilha do choque. Histórias Proibidas (2001) tenta fazer o mesmo e tem algum sucesso nisso, mas em escala bem menor. O novo longa do diretor é uma surpresa. Uma péssima surpresa. Palindromes é uma ode ao bizarro, um elogio à diferença. Solondz, ansiosíssimo por acintar mais uma vez a América, cometeu o filme mais repulsivo dos últimos tempos. Um filme que se ergue sobre o quão patético consegue tornar tudo a sua volta. Que se baseia no ridículo para convencer a platéia pelo riso, pela gargalhada, pelo escárnio. E a platéia de ontem do Cineclube Vitrine 1 (ou pelo menos, enorme parte dela) estava muito disposta a rir de tudo, desde a moça extremamente gorda e o coral de deficientes físicos até até o sexo com crianças. O riso era tão descontrolado que até em cenas de corte (como um carro passando por uma rodovia) era momento para alguma manifestação. A história da menina Aviva, que Solondz se dispôs a contar, deveria mostrar que tudo é igual e que nada muda (o tal palíndromo do título, a palavra que lida de trás pra frente tem a mesma grafia), mas só fez ressaltar a diferença pelo grotesco.

P.S.: depois de quase mais de dois anos e meio de contato pelos blogues, finalmente conheci hoje pessoalmente o Daniel Libarino, do The Bridge, num encontro bem por acaso que se transformou numa conversa rápida e que eu espero que seja repetida até antes de eu voltar para casa.

26 de out. de 2005

Mostra de Cinema de São Paulo: rapidinhas 5



A Lula e a Baleia , de Noah Baumbach.

Uma das melhores crônicas familiares norte-americanas em muito tempo. Faz uma belíssima mistura de melancolia com referências pop (seja nas citações do roteiro, seja na trilha) sem aquele quê de ?olha como eu sou inteligente? e consegue dar densidade aos dramas das personagens, em plenos anos 80, a década perdida. O elenco é uma pérola: desde os dois garotos a Laura Linney, sempre bem, e Jeff Daniels, talvez no melhor papel (e interpretação) da sua carreira. Baumbach é o co-roteirista de um dos melhores filmes lançados neste ano no Brasil: A Vida Marinha com Steve Zissou. Não é à toa que Wes Anderson produz este filme.



Os Artistas do Teatro Queimado , de Rithy Panh.

Foi um verdadeiro parto ver este filme. Seria o primeiro da Mostra, mas o equipamento no Arteplex 1 não era compatível com a cópia (por sinal, um digital super básico). Nesta segunda tentativa, o mesmo problema na Sala Uol, resolvido com alguns minutos de espera. Tinha que valer a pena. E valeu mesmo. O filme de Rithy Panh é um documentário sem ser um documentário. Parte do cotidiano dos atores que vivem nas ruínas de um teatro que enfrentou um incêndio para abrir cada vez mais seu foco e mostrar o que é o Camboja hoje. Panh faz isso sem alarde, ficciona as cenas do dia-a-dia e as registra, utilizando gente de verdade que está ali de verdade. Essa indefinição entre o documentário e a ficção (que é rememorada sempre que possível) dá matizes muito mais ricos ao filme, que, das mínimas situações cotidianas aos registros fiéis de miséria e desorganização social, todos com seu contexto histórico devidamente explicado, fica cada vez maior na memória. Lição para quem acha que o choque denuncia com mais força.



Meu Pai Tem 100 Anos , de Guy Maddin.

O curta escrita por Isabella Rossellini atravessa várias versões. Começa experimental, meio cabeça, com frases ao vento e imagens estranhinhas. Em seguida, vira brincadeira com alguma seriedade com o diálogo entre a barriga do Rossellini, Hitchcock, Selznick, Fellini e uma ponta de Chaplin. E por mim se conclui como lamento de uma filha que queria que o país fosse mais e melhor lembrado, que acha que ele mereceu e merece mais espaço na memória, que teme que sua arte seja esquecida pela falta de herdeiros, que tenta justificar sua obra. Para mim, pareceu inocente, desnecessário e mal escrito.

25 de out. de 2005

Mostra de Cinema de São Paulo: rapidinhas 4



Viagem à Itália , de Roberto Rossellini.

Um filme bem interessante à medida que relaciona conhecer um país estranho com revelar o parceiro com quem se vive há anos. O cinema como retrato da realidade está presente nas descobertas históricas e geográficas, na câmera documental, no quê popular. É menor em relação aos filmes mais, digamos, importantes de Rossellini, mas não deixa de ser um bom trabalho, ainda que o final pareça bobo. Ingrid Bergman (aqui com o bom George Sanders) faz crescer qualquer obra.



Ritual de Amor , de Victor Sjöström.

Sjöström maduro, com direção mais firme e belas soluções visuais, ainda que menos ousado. O tema ainda é culpa, punição, penitência, redenção, que parecem ser o forte do cinema do diretor. Desta vez, a história é a de uma mulher acusada de matar o marido, mas a discussão de culpa se dá menos no factual e mais no plano intencional, psicológico, o que é, de certa forma, de uma ousadia expressiva. A reconstituição de época é espetacular.



Esposa e Mártir , de Sam Wood.

O filme, restaurado recentemente depois de mais de 70 anos perdido, é um típico produto de estúdio norte-americano, com o diferencial de ser estrelado por dois grandes astros da Hollywood iniciante: Rudolph Valentino e Gloria Swanson. A história, boba e muitas vezes bastante ingênua, fala de casamento arranjado, verdadeiro amor e bons corações. O conflito é mínimo, mas Wood, que viria a fazer muitos filmes (desde dramas oscarizáveis até comédias dos irmãos Marx) já mostrava muita intimidade na composição das cenas. As externas, sejam em estúdio ou não, são ótimas.

24 de out. de 2005

Mostra de Cinema de São Paulo: rapidinhas 3



Além do Azul Selvagem , de Werner Herzog.

O documentário de Herzog é uma farsa com belas intenções ambientalistas. Ao inverter a ordem das coisas, mostrando o homem encontrando, num planeta morto onde os habitantes mudaram-se para... a Terra, ele boicota com muito bom humor a matéria que poderia classificar seu filme como "importante". As intervenções de Brad Dourif, o narrador alienígena, que seguem de muito, muito perto o caminho da brincadeira, são outro ponto contra a relevância do filme enquanto documento. Herzog, no meio disso tudo, dá seu recado e ainda nos brinda com imagens belíssimas do nada, nada não.



Cidade Baixa , de Sérgio Machado.

É de certa forma um filme decepcionante para quem esperava o primeiro longa de ficção de Machado porque sua câmera, seu roteiro, sua apresentação e composição das personagens são tão documentais quanto o belo Onde a Terra Acaba. E é justamente nesta tradução do triângulo amoroso, sem firulas e frufrus, que está o grande mérito do filme. O mais interessante é como Wagner Moura, Lázaro Ramos e, para minha completa surpresa, Alice Braga mais que todos, conseguem interpretações tão precisas e tocantes.



Por um Mundo Menos Pior , de Alejandro Agresti.

Estava fora dos meus planos até eu lembrar de que o diretor é o mesmo da pequena pérola chamada Valentín. Ver um segundo trabalho de Agresti me fez ter certeza do quão direto descendente ele é dos grandes cineastas do melodrama latino, do melodrama no bom sentido da palavra. Mesmo com um certo maniqueísmo latente, sobretudo no uso da bela música, Agresti doma os clichês e sabe criar como ninguém cenas verdadeiramente bonitas, na simplicidade e na identificação. Boa parte do elenco do filme anterior do diretor está de volta, como a ótima e linda Julietta Cardinali e o garotinho Rodrigo Noya aparece aqui num pequeno papel, com os mesmos megaóculos.



Free Zone , de Amos Gïtai.

Nos primeiros minutos, achei que Natalie Portman tinha feito Dez, do Kiarostami, e eu não tinha percebido. De fato, a câmera está dentro do carro em 90% do filme, mas Gïtai, mesmo sem o frescor do filme iraniano, consegue relativizar com sucesso as características dos povos do Oriente Médio. O carro é palco para que surjam as histórias de cada uma das três personagens e surge como espelho fiel das diferenças. É a zona livre onde é possível o encontro.


 
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