[f i l m e s d o c h i c o]

27 de set. de 2004

EM NOME DO PAI

Cláudio Torres segue missão divina para fazer cinema pop no Brasil



Redentor é um filme sem comparação dentro da recente cinematografia brasileira. Em meio a produções ora grandiosas com pretensão clássica, ora radicais imbuídas de um oportunista espírito revolucionário e de denúncia, o longa de estréia de Cláudio Torres é bálsamo benigno na sua crônica social narrada em tom farsesco. É curioso perceber como Torres (e seus co-roteiristas, entre eles sua irmã, Fernanda) conseguem transformar uma história claramente inspirada nas vigarices do ex-deputado Sérgio Naya, um dos maiores empreiteiros do país, numa fábula onde o realismo fantástico ajuda a definir um novo cinema popular brasileiro. Um cinema moderno, urbano, acessível, que não é calcado no Brasil peculiar, personagem, curioso (como o bom Narradores de Javé, Eliane Caffé, 04), muito menos na irritante - em temas e em profusão - produção classe média alta, que gera filmes medonhos como Viva Voz (Paulo Morelli, 04).

Pedro Cardoso, bom ator aqui livre da caricatura que o assombra há alguns anos, é o jornalista que se vê frente a frente com o ex-amigo de infância, o empreiteiro picareta vivido por Miguel Fallabella, que consegue não estar completamente ruim. Desse duelo que poderia resultar em reprise desnecessária e desinteressante, o diretor consegue estabelecer uma visão jocosa do país e do brasileiro a partir justamente da abolição da verossimilhança. Corajoso em assumir a farsa como carapuça, mesmo que cheio de pequenas imperfeições e alguns excessos, Cláudio Torres fez um cinema que não tenta cooptar o espectador de maneira fácil, mas que o faz refletir partindo da brincadeira, além de ajudar a estabelecer uma saída pela esquerda para quem quer fazer filme pop no Brasil. Redentor é melhor ainda do que parece porque é novo sem querer ser revolucionário.

REDENTOR
Redentor, Brasil, 2004.
Direção: Cláudio Torres.
Roteiro: Elena Soarez, Cláudio Torres e Fernanda Torres, a partir da história de João Emanuel Carneiro.
Elenco: Pedro Cardoso, Miguel Falabella, Fernanda Montenegro, Camila Pitanga, Fernando Torres, Stênio Garcia, Enrique Diaz, Jean-Pierre Noher, Mauro Mendonça, Tony Tornado, Lúcio Mauro, Lúcio Andrey, Babu Santana, Rogério Fróes, Louise Wischermann, Paulo Goulart, Tonico Pereira, Guta Stresser, José Wilker, Fernanda Torres, Domingos de Oliveira, Suely Franco, Leonardo Netto, Vagner A. Sanchez, Mário Hermeto, Marcel Miranda, Guilherme Vieira.
Fotografia: Ralph Strelow. Montagem: Vicente Kubrusly. Direção de Arte: Tulé Peake. Música: Maurício Tagliari e Luca Raele. Figurinos: Marcelo Pies. Produção: Claudio Torres e Leonardo Monteiro de Barros. Site Oficial: www.redentorofilme.com.br.

nas picapes: Well It's True That We Love One Another, The White Stripes.

A LENDA DO PRODUTOR SEM CABEÇA

Jerry Bruckheimer ataca novamente: a vítima é o rei mais mítico da história



O produtor Jerry Bruckheimer é uma das maiores pragas de Hollywood. Consegue colocar as garras perversas em tudo: destrói gêneros, desacerta bons diretores e dilacera lendas. As façanhas do rei Arthur e de seus cavaleiros da Távola Redonda foram as mais recentes vítimas da sede financeira do vil caçador de gordas bilheterias. A propaganda do filme que ele convenceu Antoine Fuqua a dirigir, inspirado em alguns dos estudos que tentam inserir o mítico personagem na história européia, tratam de vender o produto de Bruckheimer como ?o homem por trás da lenda?. Tudo para justificar mais um filme de ação com o nome do produtor nos créditos.

Rei Arthur tem seus méritos: a localização histórica dos cavaleiros inicialmente parece interessante, mas o roteiro raso que afasta os elementos fantásticos da trama, como no débil Tróia (Wolgang Petersen, 04), não sustenta o filme como algo além de um blockbuster para o verão dos Estados Unidos. Arthur é um militar que lidera um grupo de sarmatianos, povo que vivia onde hoje seria a Áustria e foi incorporado e escravizado pelos romanos, no patrulhamento de uma área da Bretanha cercada por um muro. Seus cavaleiros são os escravos transformados por Roma em guardas com missões suicidas. Guinevere é uma guerreira da tribo bretã do Woads, selvagem liderados por Merlin, uma espécie de terceiro poder diante dos romanos e dos bárbaros saxões.

Comprovações históricas muito à parte já que não há nada provado, o filme elimina ou simplesmente ignora elementos fundamentais à trama do rei guerreiro. Para começar, excalibur, a espada mística, não tem nenhuma simbologia especial. A feiticeira Morgana, meia-irmã de Arthur e personagem fundamental para o desenvolvimento da lenda, não chega nem a ser citada durante o filme, que também nunca dá a Merlin o posto de guru de Arthur ou de místico poderoso. Por solicitação de Bruckheimer, o triângulo amoroso entre Arthur, Guinevere e Lancelot se resume a duas ou três brincadeiras verbais sem maior conseqüência.

Sobra o quê?

Nada mais que a habilidade de Fuqua - e de seu diretor de fotografia Slawomir Idziak, o mesmo de A Liberdade é Azul (Krzysztóf Kieslowski, 93) - em compor algumas seqüências. A batalha no gelo é, sem dúvida, a melhor delas, com uma forte inspiração nas imagens dos westerns de Sergio Leone e Sam Peckinpah, ainda que anos-luz aquém do talento dos dois. Mas a habilidade técnica do diretor não é grande coisa frente às constrangedoras cenas de "avante, cavaleiros" tramadas pelo roteirista. O filme ainda sofre de uma certa falta de carisma de parte dos atores. Keira Knightely é linda, mas a versão reloaded de Winona Ryder ainda precisa de umas aulas de interpretação.

Bruckheimer faz mal a Hollywood, faz mal ao cinema. O excepcional Excalibur (John Boorman, 81) consegue ser muito mais realista e coerente reproduzindo toda a lenda e seus personagens. Até a série de HQ Camelot 3000, publicada no início dos anos 80 (e que bem que poderia receber uma republicação da Panini Comics no Brasil) também é um resultado muito mais consistente mesmo transpondo a ação para daqui a mil anos. Falta magia em Rei Arthur. No fim, a exaustiva tentativa de dar veracidade a história de Arthur eliminou a golpes de foice, machado e algumas flechadas certeiras o que há de mais encantador no personagem: o místico do mítico.

REI ARTHUR
King Arthur, EUA/Irlanda, 2004.
Direção: Antonine Fuqua.
Roteiro: David Franzoni.
Elenco: Clive Owen, Ioan Gruffudd, Mads Mikkelsen, Joel Edgerton, Hugh Dancy, Ray Winstone, Ray Stevenson, Keira Knightley, Stephen Dillane, Stellan Skarsgård, Til Schweiger, Sean Gilder, Pat Kinevane, Ivano Marescotti, Ken Stott,
Lorenzo De Angelis, Stefania Orsola Garello, Dawn Bradfield.
Fotografia: Slawomir Idziak. Montagem: Conrad Buff e Jamie Pearson. Direção de Arte: Dan Weil. Música: Hans Zimmer. Figurinos: Penny Rose. Produção: Jerry Bruckheimer. Site Oficial: www.kingarthurmovie.com.

nas picapes: There's No Home For You Here, The White Stripes.

23 de set. de 2004

melhores filmes do ano
(até o momento)


1 Elefante
(Elephant, EUA, 2003) Direção: Gus Van Sant.
2 O Pântano
(La Ciénaga, Argentina, 2001) Direção: Lucrecia Martel.
3 O Prisioneiro da Grade de Ferro
(idem, Brasil, 2003) Direção: Paulo Sacramento.
4 Kill Bill: Vol. 1
(Kill Bill: Vol. 1,EUA, 2003) Direção: Quentin Tarantino.
5 Filme de Amor
(idem, Brasil, 2003) Direção: Júlio Bressane.
6 Homem-Aranha 2
(Spiderman 2, EUA, 2004) Direção: Sam Raimi.
7 Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças
(Eternal Sunshine Of The Spotless Mind, EUA, 2004) Direção: Michel Gondry.
8 Encontros e Desencontros
(Lost In Translation, EUA, 2003) Direção: Sofia Coppola.
9 Escola de Rock
(School of Rock, EUA, 2003) Direção: Richard Linklater.
10 Ser e Ter
(Être Et Avoir, França, 2002) Direção: Nicholas Philibert.


piores filmes do ano
(até o momento)


1 Cama de Gato
(idem, 2004) Direção: Alexandre Stockler.
2 Fahrenheit 11 de Setembro
(Fahrenheit 9/11, EUA, 2004) Direção: Michael Moore.
3 Encantadora de Baleias
(Whale Rider, 2003) Direção: Niki Caro.
4 A Paixão de Cristo
(The Passion Of The Christ, EUA/Itália, 2004) Direção: Mel Gibson.
5 Glauber, o Filme - Labirinto do Brasil
(idem, Brasil, 2004) Direção: Sylvio Tendler.

22 de set. de 2004

O AMOR NOS TEMPOS MODERNOS

Comédia recorre ao tradicional para falar da instabilidade das relações



A proposta deste pequeno filme irlandês é muito boa: investigar, ainda que superficialmente, a instabilidade das relações amorosas de hoje em dia. O assunto dá pano para mangas, golas e bainhas. O efêmero na vida a dois é relativamente pouco explorado no cinema, que ainda acredita no amor definitivo, eterno, infalível. Liz Gill, ex-assistente de Martin Scorsese, parte então de um tema bastante válido para dar seqüência a sua comédia de costumes. O problema é como a diretora desenvolve seus encontros e desencontros.

Todas as Cores do Amor se ergue sobre recursos desgastados: o primeiro é o do filme de muitos personagens, onde as histórias se misturam para justificar a vulnerabilidade das relações. Robert Altman seria mais cuidadoso em determinar os caminhos para seus personagens. Liz Gill até tem um texto esperto, mas ele só funciona para criar situações óbvias, pintadas com cores mais contemporâneas. Aliás, o mundo contemporâneo é, por si só, outra justificativa para que o amor seja finito, segundo a diretora. Os pares flutuam porque a sexualidade flutua, os interesses (não necessariamente os sexuais) flutuam e a liberdade de um milênio que engatinha faz com que as convicções flutuem. Mas essa contemporaneidade termina sendo negada no fim do filme, quando Liz Gill opta por finais felizes, complacentes, arrumadinhos e bobos de tão simpáticos.

TODAS AS CORES DO AMOR
Goldfish Memory, Irlanda, 2003.
Direção e Roteiro: Liz Gill.
Elenco: Sean Campion, Flora Montgomery, Jean Butler, Peter Gaynor, Fiona Glascott, Stuart Graham, Lise Hearns, Demien McAdam, Keith McErlean, Justine Mitchell, Aisling O'Neill, Fiona O'Shaughnessy.
Fotografia: Ken Byrne. Montagem: Dermot Diskin. Direção de Arte: Mags Linnane. Música: Richie Buckley. Figurinos: Marian Smyth. Produção: Breda Walsh. Site Oficial: www.goldfishmemory.com.

nas picapes: Reel Around the Fountain, The Smiths.

AS COISAS SIMPLES DA VIDA

Ou: como o cinema oriental se enveredou por um caminho sem volta



A arte pode transformar. O poder das palavras de um livro não é mensurável. Balzac e a Costureirinha Chinesa é um filme sobre a capacidade de revolução de uma obra. Acompanhando a história de dois amigos burgueses levados para um campo de reeducação pelo regime de Mao Tsé Tung, o longa-metragem versa sobre como os livros podem reconstruir a uma vida. A costureirinha analfabeta que cruza o caminho da dupla é quem mais sente as mudanças causadas pelos livros proibidos pelos comunistas. O tom é plácido, contemplativo e delicado. E, por isso mesmo, óbvio, mesmo sem querer ser.

A mecânica é a mesma do cinema oriental preguiçoso: explorar a naturalmente espetacular paisagem, a revelar a beleza dos pequenos gestos por trás das tradições seculares e reverenciar a simplicidade, a timidez, a particularidade. No entanto, o mais frustrante no filme é como ele não sabe desenvolver a transformação da personagem, que é abrupta e filmada de maneira primária. O salto espaço-temporal no final da história não se justifica, não tem razão de ser na trama. Balzac e a Costureirinha Chinesa, com sua plástica natural, engana à primeira vista, mas revela um diretor imaturo e até ingênuo, que fez um filme bonitinho. E só.

BALZAC E A COSTUREIRINHA CHINESA
Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise, França/China, 2002.
Direção: Dai Siji.
Roteiro: Dai Siji e Nadine Perront.
Elenco: Zhou Xun, Chen Kun, Liu Ye, Wang Shuangbao, Cong Zhijun, Wang Hong Wei.
Fotografia: Jean-Marie Dreujou. Montagem: Luc Barnier e Julia Gregory. Direção de Arte: Cao Juiping. Música: Wang Pujian. Figurinos: Tong Huamiao. Produção: Lise Fayolle. Site Oficial: www.bacfilms.com/site/balzac.

nas picapes: Yao a Yao Dao Waipo Qiao, Gong Li.

19 de set. de 2004

A FILOSOFIA PEDE CARONA

Filme que transforma Tom Cruise em assassino não deixa de ser veículo para o ator



Existe um certo consenso de que Colateral é um dos melhores filmes da temporada, quiçá do ano. Um filme que dá um passo além do gênero policial convencional, que investiga as motivações de seus personagens. É bem certo que há esta intenção, mas seus resultados não são tão majestosos assim. Michael Mann comete uma vez mais seu thriller com profundidade, espécie de marca do cinema que já faz há alguns anos. E, como nas últimas vezes, pega carona num astro e o coloca num papel menos óbvio que os de costume. Fez isso com Robert De Niro, Al Pacino e, agora, escala Tom Cruise como um assassino profissional que percorre Los Angeles com um taxista como refém/cúmplice.

Esperto, Michael Mann, que sabe o material que tem à mão, escolhe um não-lugar para desenvolver sua história. Parte importante do filme acontece dentro de um táxi. Mann protege suas criaturas da interferência do cenário e ressalta o texto e o trabalho dos atores. Vincent, o assassino, e Max, o motorista, estão enjaulados nos limites do veículo, imersos na imensidão de uma Los Angeles noturna raramente vista no cinema. São um ponto mínimo no mapa. Eles estão lá e não estão em lugar nenhum, o que cria uma experiência curiosa no deslocamento espacial da dupla. Enquanto isso, Cruise e Jamie Foxx ficam presos ao diálogo que se desenvolve entre seus personagens, que se tornam quase íntimos, ao ponto de questionarem desejos, ambições e motivações um do outro. Ambos procuram entender o funcionamento da vida do parceiro/adversário. À medida que o relógio anda, a conversa entre os dois se torna mais próxima e ganha proporções filosóficas.

É aí que Mann perde um ponto.

A intimidade entre os estranhos começa a parecer calculada, esquematizada, muito pensada. A boa idéia ganha ares de artificial. A moldura se revela com facilidade e a trama começa a se transformar em veículo para astro. Para o rosto mais conhecido do cinema nos últimos vinte anos, aceitar uma personagem com esta é uma atitude louvável, admirável, ousada. Mas interpretar Vincent é mais uma etapa do plano que Cruise desenvolve há um bom tempo de se tornar um ator sério e respeitado, dissociando-se da imagem de galã bonzinho que lhe rendeu alguns milhões de dólares.

No entanto, Tom Cruise sabe que este filme é um filme de atores, onde há superexposição das duas personagens centrais. E qualquer falha pode ser implacável. Ele adota aquela que talvez seja a melhor tática para um ator com suas muitas limitações: anula-se numa interpretação discreta. Procura não chamar atenção para suas falhas e, por fim, consegue um desempenho acima da média. O astro se revela bem generoso com seu parceiro de cena. Contido, ele se iguala a Jamie Foxx, correto, e a dupla funciona bem mesmo quando o espectador fica ciente da manipulação que o roteiro opera para que o filme alcance alcunha de renovador. Dois exemplos deste golpe baixo: quando Vincent conhece a mãe de Max e quando se revela um exímio conhecedor de jazz em uma de suas paradas.

O que acontece, porém, é que embora siga um caminho particular, o filme se assume como cinemão na sua meia hora final. Michael Mann, que, sejamos justos, é um cineasta bom, embala tudo numa fotografia que valoriza a beleza inerente da cidade grande. A captura das imagens reedita os trabalhos feitos em Fogo contra Fogo (95) e O Informante (99), mas é muito eficiente. Se ele peca num certo exagero de sons diversos da trilha sonora, acerta justamente no que pretende negar: Colateral busca incessantemente a peculiaridade, mas é justamente quando se apóia nos pequenos lugares comuns que o filme se resolve com prazer e uma certa dose de inteligência.

COLATERAL
Collateral, EUA, 2004.
Direção Michael Mann.
Roteiro: Stuart Beattie.
Elenco: Jamie Foxx, Tom Cruise, Mark Ruffalo, Jada Pinkett Smith, Javier Bardem, Peter Berg, Bruce McGill, Irma P. Hall, Barry Shabaka Henley, Jason Statham.
Fotografia: Dion Beebe e Paul Cameron. Montagem: Jim Miller e Paul Rubell. Direção de Arte: David Wasco. Música: James Newton Howard (com música adicional de Zachary Koretz e Antonio Pinto). Figurinos: Jeffrey Kurland. Produção: Michael Mann e Julie Richardson. Site Oficial: www.collateral-themovie.com.

nas picapes: More Than This, Roxy Music.

VIAGEM INSÓLITA

Os defeitos são muitos, mas O Terminal tem um grande mérito: seu diretor



Existe um certo consenso de que O Terminal é um dos desacertos da temporada, quiçá do ano. Um filme que não vai além da exploração do personagem pitoresco em situação pitoresca, que desperdiça uma boa idéia inicial num roteiro com poucas idéias realmente originais ou inteligentes. Mas o longa é bem melhor que as insípidas resenhas escritas sobre ele indicam. Não que isso seja muito. A história do estrangeiro que fica preso por meses no saguão de um aeroporto por causa de uma inesperada despatriação, entre a comédia fácil e o melodrama clássico, consegue resultados corretos na visão de Steven Spielberg.

O diretor se apóia exclusivamente em seu elenco, o que o deixa refém das limitações que registra. Há o protagonista confuso e os coadjuvantes cômicos. Tom Hanks raramente se distancia da caricatura, o que incomoda mortalmente, mas não mais que o visível excesso de maquiagem em algumas seqüências. E os amigos estrangeiros, perigosa conclusão sobre a aproximação de iguais, aparecem sem muita graça no decorrer do filme, apesar de uma exagerada valorização do indiano que já havia dado o ar da graça no excelente Os Excêntricos Tenenbaums (Wes Anderson, 01). O romance com Catherine Zeta-Jones, bobo e pouco envolvente, também não ajuda.

Mas Steven Spielberg, o cineasta tão renegado por sua popularidade, é um ás na capacidade de arrebatamento. Consegue criar cenas tão simples e emocionantes como poucos. A seqüência em que Viktor Navorski aborda a oficial Torres para recolher informações para o colega apaixonado é competentíssima e faz com que os clichês do filme se transformem em boas intenções aos olhos do espectador comum. O Terminal, com todas as suas muitas falhas, é um filme sem grandes ambições. Spielberg, que tantas vezes se quis firmar como cineasta sério, simplesmente reservou um momento para contar uma pequena história. O final cheio de lugares comuns (a revelação do motivo da viagem, a saída triunfal) chegou de uma maneira particularmente especial para mim: foi quando eu lembrei que as emoções básicas, rasas, rasteiras ainda (ou ainda bem) me abalam um bocado. Eu, feliz, me dei conta de que eu sou um espectador comum.

O TERMINAL
The Terminal, EUA, 2004.
Direção Steven Spielberg.
Roteiro: Sacha Gervasi e Jeff Nathanson, baseados na história criada por Gervasi e Andrew Niccol.
Elenco: Tom Hanks, Stanley Tucci, Catherine Zeta-Jones, Diego Luna, Chi McBride, Kumar Pallana, Zoe Saldana, Eddie Jones, Jude Ciccolella, Barry Shabaka Henley, Benny Golson.
Fotografia: Janusz Kaminski. Montagem: Michael Kahn. Direção de Arte: Alex McDowell. Música: John Williams. Figurinos: Mary Zophres (com Mathhew Jerome). Produção: Laurie MacDonald, Walter F. Parkes e Steven Spielberg. Site Oficial: www.theterminal-themovie.com.

nas picapes: Left To My Own Devices, Pet Shop Boys.

OLHA O JEITINHO DELA ANDAR...

Mulher-Gato é mais um caso clássico de apropriação indébita



É por causa de filmes como Mulher-Gato que ainda há muita gente que considera personagens de quadrinhos tolos e destinados exclusivamente ao público infantil. Para gostar deste exemplo miserável de como o cinema pode destruir uma anti-heroína das HQs, é realmente necessário ser desprovido de qualquer tipo de bom gosto e bom senso. O filme da criatura de origem francesa conhecida como Pitof, desonestamente, prática corriqueira no cinema de hoje, se vende como "baseado nos personagens criados por Bob Kane", mas desfigura completamente sua fonte de inspiração.

Para dar conta de seu atentado, Pitof precisava de alguém que embarcasse na tragédia anunciada que havia desenhado. E conseguiu. Halle Berry, que já tinha desperdiçado a Tempestade dos X-Men em duas interpretações insípidas (quando não ruins), assumiu a máscara e os trejeitos da personagem cujo grande rival é uma megacorporação da indústria de cosméticos. A sinuosa atriz, capaz de radicais mudanças físicas para viver a protagonista (ela corta e pinta o cabelo), empresta sua conhecida falta de habilidade para uma visão deturpada da anti-heroína criada por Kane.

Sai Selina Kyle, que já havia ganho um bela transposição para o celulóide com Michelle Pfeiffer, e entra Patience Philips, a moça desajeitada que ganha autoconfiança e um gingado próprio depois de ser ressucitada por um gato egípcio milenar. Realmente, um caso exemplar de diretor e time de roteiristas inspirados, que ainda juram que fazem uma fábula feminista moderna. Como o tom do filme é a farsa, Pitof incentiva Halle Berry a rosnar e rebolar bastante para ressaltar a porção felina da protagonista. Tudo isso no mais revolucionário uniforme de superser que já apareceu nas telas. Um trabalho tão dedicado e complexo que só pode ter surgido de alguém nascido na mesma galáxia distante que trouxe para nossa dimensão a brilhante idéia de realizar este filme.

MULHER-GATO
Catwoman, EUA, 2004.
Direção Pitof.
Roteiro: John Rogers, Michael Ferris e John D. Brancatto, a partir da história criada por Ferris, Brancatto e Theresa Rebeck, deturpando personagens criados por Bib Kane.
Elenco: Halle Berry, Sharon Stone, Lambert Wilson, Benjamin Bratt, Frances Conroy, Alex Borstein, Michael Massee, Byron Mann, Kim Smith, Christopher Heyerdahl, Peter Wingfield.
Fotografia: Thierry Arbogast. Montagem: Sylvie Landra. Direção de Arte: Bill Brzeski. Música: Klaus Badelt. Figurinos: Angus Strathie. Produção: Denise Di Novi e Edward McDonnell. Site Oficial: www.catwoman.warnerbros.com.

nas picapes: Glory Box, Portishead.

17 de set. de 2004

ALFRED 2003

No início de 2004, a Liga dos Blogues Cinematográficos elegeu os melhores do ano. Como o blog da liga foi para o espaço, resposto os resultados aqui.

melhor filme do ano

Sobre Meninos e Lobos, de Clint Eastwood 11 votos
A Última Noite, Spike Lee 6 votos
O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei, Peter Jackson 6 votos
A Viagem de Chihiro, Hayao Miyazaki 5 votos
Gangues de Nova York, Martin Scorsese 2 votos

ator

Daniel Day-Lewis, Gangues de Nova York (10 votos)
Sean Penn, Sobre Meninos e Lobos (10 votos)
Adam Sandler, Embriagado de Amor (5 votos)
Edward Norton, A Última Noite (3 votos)
Jack Nicholson, As Confissões de Schmidt (2 votos)

diretor

Martin Scorsese, Gangues de Nova York (8 votos)
Clint Eastwood, Sobre Meninos e Lobos (7 votos)
Peter Jackson, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (6 votos)
Spike Lee, A Última Noite (4 votos)
Brian De Palma, Femme Fatale (3 votos)

atriz

Julianne Moore, Longe do Paraíso (10 votos)
Julianne Moore, As Horas (7 votos)
Maggie Gyllenhaal, Secretária (5 votos)
Nicole Kidman, As Horas (4 votos)
Rebecca Romjin-Stamos, Femme Fatale (2 votos)

roteiro original

Jorge Furtado, O Homem que Copiava (11 votos)
Hayao Miyazaki, A Viagem de Chihiro (8 votos)
Jay Cocks, Kenneth Lonergan e Steve Zaillian, Gangues de Nova York (4 votos)
Paul Thomas Anderson, Embriagado de Amor (4 votos)
Brian De Palma, Femme Fatale (3 votos)

ator coadjuvante

Tim Robbins, Sobre Meninos e Lobos (9 votos)
Christopher Walken, Prenda-me Se For Capaz (6 votos)
Kevin Bacon, Sobre Meninos e Lobos (6 votos)
Sean Astin, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (5 votos)
Chris Cooper, Adaptação (4 votos)

fotografia

Edward Lachman, Longe do Paraíso (13 votos)
Andrew Lesnie, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (7 votos)
Robert Elswit, Embriagado de Amor (6 votos)
Michael Ballhaus, Gangues de Nova York (3 votos)
Tom Stern, Sobre Meninos e Lobos (sem votos)

pior filme

Matrix Revolutions, Andy e Larry Wachowski (6 votos)
Débi e Lóide 2, Troy Miller (6 votos)
O Apanhador de Sonhos, Lawrence Kasdan (5 votos)
Dogma do Amor, Thomas Vintenberg (4 votos)
Bad Boys 2, Michael Bay (3 votos)

canção

The Hands That Build America (U2), U2, Gangues de Nova York (7 votos)
Into The West (Howard Shore, Fran Walsh e Annie Lennox), Annie Lennox, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (6 votos)
Lose Yourself (M. Mathers, J. Bass e L. Resto), Eminem, 8 Mile (6 votos)
Here's to Love (Marc Shaiman), Ewan McGregor e Renée Zellweger, Abaixo o Amor (5 votos)
All You Need Is Love (Lennon & McCartney), Linden David Hall, Simplesmente Amor (1 voto)

atriz coadjuvante

Catherine Zeta-Jones, Chicago (8 votos)
Laura Linney, Sobre Meninos e Lobos (8 votos)
Emily Watson, Embriagado de Amor (6 votos)
Miranda Richardson, Spider (5 votos)
Marcia Gay Harden, Sobre Meninos e Lobos (2 votos)

música

Joe Hiashi, A Viagem de Chihiro (8 votos)
Howard Shore, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (6 votos)
John Williams, Prenda-me Se For Capaz (6 votos)
Philip Glass, As Horas (6 votos)
Elmer Bernstein, Longe do Paraíso (2 votos)

filme de estréia

Simplesmente Amor, Richard Curtis (7 votos)
Chicago, Rob Marshall (6 votos)
Confissões de uma Mente Perigosa, George Clooney (5 votos)
Amarelo Manga, Cláudio Assis (4 votos)
Tolerância Zero, Henry Bean (3 votos)

efeitos visuais

O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (16 votos)
Matrix Reloaded (4 votos)
X-Men 2 (4 votos)
Hulk (3 votos)
Matrix Revolutions (sem votos)

montagem

Peter Boyle, As Horas (12 votos)
Bill Pankow, Femme Fatale (5 votos)
James Sellkirk (e Annie Harris), O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (5 votos)
Joel Cox, Sobre Meninos e Lobos (4 votos)
Thelma Schoonmaker, Gangues de Nova York (3 votos)

elenco

Sobre Meninos e Lobos (11 votos)
As Horas (10 votos)
Simplesmente Amor (4 votos)
O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (3 votos)
A Última Noite (2 votos)

direção de arte

Dante Ferretti, Gangues de Nova York (8 votos)
Grant Major, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (7 votos)
Mark Friedberg, Longe do Paraíso (6 votos)
Andrew Laws, Abaixo o Amor (5 votos)
Alan Starski, O Pianista (2 votos)

pior atriz

Jennifer Lopez, Encontro de Amor (10 votos)
Carrie Anne Moss, Matrix Reloaded (7 votos)
Brittany Murphy, Recém-Casados (3 votos)
Paloma Duarte, Deus é Brasileiro (3 votos)
Rachel Roberts, Simone (1 voto)

sonoplastia

O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (15 votos)
X-Men 2 (6 votos)
Gangues de Nova York (3 votos)
Matrix Reloaded (3 votos)
Matrix Revolutions (sem votos)

filme brasileiro

O Homem que Copiava, Jorge Furtado (19 votos)
Separações, Domingos de Oliveira (4 votos)
Amarelo Manga, Cláudio Assis (2 votos)
Carandiru, Hector Babenco (2 votos)
Lisbela e o Prisioneiro, Guel Arraes (2 votos)

maquiagem

X-Men 2 (11 votos)
O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (11 votos)
Gangues de Nova York (4 votos)
As Horas (2 votos)
Frida (sem votos)

pior diretor

Andy e Larry Wachowski, Matrix Reloaded (7 votos)
Michael Bay, Bad Boys 2 (6 votos)
Thomas Vintenberg, Dogma de Amor (4 votos)
Andrew Niccol, Simone (4 votos)
Lawrence Kasdan, O Apanhador de Sonhos (3 votos)

roteiro adaptado

Brian Helgeland, Sobre Meninos e Lobos (10 votos)
David Benioof, A Última Noite (7 votos)
David Hare, As Horas (6 votos)
Fran Walsh, Peter Jackson e Philippa Boyens, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (5 votos)
Ronald Harwood, O Pianista (2 votos)

disco

A Festa Nunca Termina (13 votos)
8 Mile (4 votos)
Chicago (3 votos)
Lisbela e o Prisioneiro (3 votos)
Simplesmente Amor (3 votos)

figurinos

Daniel Orlandi, Abaixo o Amor (10 votos)
Sandy Powell, Gangues de Nova York (8 votos)
Ngilla Dickson e Richard Taylor, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (4 votos)
Sandy Powell, Longe do Paraíso (4 votos)
Colleen Atwood, Chicago (2 votos)

pior ator

Keanu Reeves, Matrix Reloaded (10 votos)
Ben Affleck, Demolidor (6 votos)
Nick Nolte, Hulk (4 votos)
Paul Walker, + Velozes + Furiosos (4 votos)
Eminem, 8 Mile (3 votos)

cena do ano

Daniel Day-Lewis envolto na bandeira norte-americana, Gangues de Nova York (9 votos)
A explosão de Edward Norton eme frente ao espelho, A Última Noite (8 votos)
A batalha nos campos de Pellenor, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (5 votos)
O beijo entre Adam Sandler e Emily Watson no Havaí, Embriagado de Amor (5 votos)
O discurso final de Laura Linney para Sean Penn, Sobre Meninos e Lobos (3 votos)

O Alfred 2004 vem aí.

VOTO DECLARADO

Cama de Gato, de Alexandre Stockler, acaba de estrear em circuito. Eu vi o filme na Mostra de Cinema de São Paulo de 2002, mas, como eu não consigo esperar até revê-lo, declaro antecipadamente que vai ter o meu voto como "pior filme do ano". Porque é absolutamente execrável.

15 de set. de 2004

VOCÊ TEM MEDO DE QUÊ?

As reviravoltas das tramas de M. Night Shyamalan indicam que seu temor é não ser um autor



Sejamos bem diretos: A Vila, o último trabalho de M. Night Shyamalan, é uma grande bobagem. Para além da excelente trilha sonora composta por James Newton Howard e executada por um violinista cujo nome não vem à memória agora, o filme é de muita pretensão e pouca eficiência na execução. O grande desacerto de Shyamalan é que sua idéia original era boa demais para um roteiro que não sabe desenvolvê-la bem. O longa é um filme de sustos, sim. Existem pelo menos uns três dos bons. Fazer um filme de sustos não faz vergonha para ninguém. Mas Shyamalan provavelmente achou que isso fosse pouco e resolveu recorrer à tática que o cinema atual redescobriu cinco anos atrás com um roteiro escrito por ele mesmo, Sexto Sentido (um filme muito eficiente), e redefinir a história apresentada ao espectador.

Quando isso é bem feito, maravilha. Quando o roteirista não consegue dar fluidez ao texto para que se apresente as situações com a verossimilhança necessária para uma virada tão abrupta, todo o trabalho de uma equipe inteira vai por água abaixo. Entenda: a questão não é abolir ou afastar a transgressão, que parece ser a principal justificativa do cinema de M. Night Shyamalan. Além de extremamente saudável, buscar a transgressão, seja sob que prisma ela apareça, é algo necessário para diferenciar gente que tem algo a dizer de gente que está aí para reproduzir. Nesse sentido, o cineasta merece aplausos. Ele realmente tenta criar. Criar, sobretudo, um estilo, uma marca, uma obra. Mas ou suas visões do mundo são primárias ou ele não consegue dar a executabilidade necessária para embasar seu discurso.

A Vila parece querer denunciar. Seus defensores (e eles são muitos e muitos deles são gente por quem eu tenho muita admiração) enxergam no filme uma crítica - ou ainda um ensaio sobre - à formação do povo norte-americano, que versa sobre como este povo foi construído (e reconstruído) sobre terreno pantanoso, idéias frágéis, alienação. Pode até ser. Mas Shyamalan se empenha com tanta dedicação a sua criação, que se aparta de sua trama para nos revelar, ainda que sem querer, o processo. Existe uma necessidade quase que obrigatória de se explicar em texto o que está acontecendo, como quando William Hurt revela parte de sua farsa a Bryce Dallas Howard (cuja interpretação é nada mais que "espertinha") ou quando o próprio diretor, na sua já tradicional participaçãozinha (ponta é pouco) mostra que "não é de hoje...". Ora, se falta consistência à tentativa de mensagem de uma trama mal costurada, sobra o quê?

A VILA
The Village, Estados Unidos, 2004.
Direção e Roteiro: M. Night Shyamalan.
Elenco: Bryce Dallas Howard, Joaquin Phoenix, William Hurt, Sigourney Weaver, Adrien Brody, Brendan Gleeson, Cherry Jones, Celia Weston, John Christopher Jones, Frank Collison, Jayne Atkinson, Judy Greer, Fran Kranz, Michael Pitt, Jesse Eisenberg, M. Night Shyamalan.
Fotografia: Roger Deakins. Montagem: Christopher Tellefsen. Direção de Arte: Tom Foden. Música: James Newton Howard. Figurinos: Ann Roth. Produção: Sam Mercer, Scott Rudin e M. Night Shyamalan. Site Oficial: www.thevillage.movies.go.com.

nas picapes: Lady Jane, The Rolling Stones.

13 de set. de 2004

O AMOR É FILME

Nick Cassavetes e todos os clichês do folhetim que minha tia adorava



Já faz alguns anos que minha tia Leninha já não está mais por estas bandas, mas há uma coisa que não me sai da cabeça quando eu lembro dela: sua coleção - enorme ? de livros destinados ao público feminino, vendidos em bancas de revista. A tia Leninha adorava as dramáticas histórias de amor maior que tudo que aquelas folhas de papel jornal guardavam. Histórias de reviravoltas magníficas onde não havia limites para o amor. Caso tivesse visto Diário de uma Paixão, a tia Leninha provavelmente o incluiria entre seus filmes favoritos. Parece um filme feito especialmente para ela, que passou a vida sonhando com amores perfeitos e ilimitados.

Confesso que o trailer, o cartaz com um erro grosseiro de português e o plot não haviam me despertado o mínimo interesse em assistir ao filme, o que só aconteceu para apresentar meu amigo Guilherme Lamenha a uma das salas de cinema de Salvador. Diário de uma Paixão me cheirava a filme feito para ganhar dinheiro fácil, sobretudo de mulheres em busca do amor perdido. Parecia mal feito, rasteiro, com poucos encantamentos. A presença de Gena Rowlans me fez divagar sobre Nick Cassavetes fazer filmes para empregar a mãe. A primeira meia hora de projeção não mudou muito esta idéia e garantiu bocejos e até rápidas cochiladas. Até que algo mudou.

Cassavetes aos poucos revela que sua trama é mesmo uma básica e clássica história de amor, mas vai além. Ele mergulha profundamente nas entranhas (no que isso remeta ao sexo, também) do folhetim tipicamente norte-americano. Ao contrário de outro grande filme-clichê do ano, Minha Vida Sem Mim, de Isabel Coixet, ele não se apropria e transforma os elementos do gênero, mas apenas reproduz o melodrama com propriedade. O que diferencia o filme de Cassavetes dos de seus colegas é que ele acredita no que filma, seja quando coloca seu casal de protagonistas no meio de um enorme grupo de cisnes brancos ou quando ignora a verossimilhança em nome de uma das mais bem resolvidas cenas finais dos últimos tempos no cinema romântico. Diário de uma Paixão é completamente honesto e puro. Como a tia Leninha achava que as histórias de amor deveriam ser. Haja coração.

DIÁRIO DE UMA PAIXÃO
The Notebook, EUA, 2004.
Direção: Nick Cassavetes.
Roteiro: Jeremy Leven, baseado na novela The Notebook, de Nicholas Sparks (adaptada por Jan Sardi).
Elenco: Ryan Gosling, Rachel McAdams, James Garner, Gena Rowlands, James Marsden, Sam Shepard, David Thornton, Joan Allen, Kevin Connolly, Tim Ivey.
Fotografia: Robert Fraisse. Montagem: Alan Heim. Direção de Arte: Sarah Knowles. Música: Aaron Zigman. Figurinos: Karyn Wagner. Produção: Lynn Harris e Mark Johnson. Site Oficial: www.thenotebookmovie.com.

nas picapes: Lisbela, Los Hermanos.

PALHAÇO QUE NÃO FAZ RIR

Os irmãos Coen pisam na bola e fazem a comédia mais sem graça dos últimos tempos



Recriar uma obra que já existe precisa de um bom motivo. Ou não? Hitchcock até hoje não deve procurar saber o que atingiu a cabeça de Gus Van Sant para que ele achasse que refilmar Psicose (60) seria uma boa idéia. O Quinteto da Morte, deliciosa comédia britânica de humor negro dirigida por Alexander Mackendrick em 1955, definitivamente não precisa ser refeito. Mas os irmão Joel e Ethan Coen, que pela primeira vez em vinte anos assinam juntos a direção de um filme, acharam que transpor a ironia tipicamente britânica para o sul norte-americano seria justificativa suficiente para recontar a história do grupo de golpistas que se utilizam da casa de uma velha senhora para planejar um assalto. Estavam errados.

Problema número um: o melhor humor negro do mundo é propriedade dos britânicos há decadas. Tentar adaptar esse humor para uma realidade diferente causou estranhamento. As piadas ficaram sem graça, ?o clima? pretendido é raramente conseguido apesar do esforço da dupla de diretores/roteiristas. Problema número dois: o elenco. Não que o grupo seja ruim, mas num filme com esse propósito, ele deveria ser ótimo. E bater Alec Guinness, Peter Sellers e Herbert Lom com um Tom Hanks deslocado e sem saber muito bem bem o que fazer é uma missão bem complicada. Problema número três: o filme nos remete em demasia a obras anteriores do Coen, como Arizona Nunca Mais (87) e E Aí Meu Irmão, Cadê Você? (00). O gosto de piada velha prevalece.

MATADORES DE VELHINHAS
The Ladykillers, EUA, 2004.
Direção e Roteiro: Joel e Ethan Coen, baseados no roteiro de William Rose para o filme O Quinteto da Morte, de Alexander Mackendrick.
Elenco: Tom Hanks, Irma P. Hall, Marlon Wayans, J.K. Simmons, Tzi Ma, Ryan Hurst, Diane Delano, George Wallace.
Fotografia: Roger Deakins. Montagem: Roderick Jaynes. Direção de Arte: Dennis Gassner. Música: Carter Burwell. Figurinos: Mary Zophres. Produção: Ethan Coen, Joel Coen, Tom Jacobson, Barry Josephson e Barry Sonnenfeld.. Site Oficial: www.video.movies.go.com/ladykillers/splash.html.

nas picapes: Long Time Woman, Pam Grier.

FRIO COMO A NEVE

Filme de Jayme Monjardim torra o dinheiro da Globo e não dá em nada



Olga é tudo o que se disse sobre e muito mais. Mas o principal defeito do primeiro longa-metragem de Jayme Monjardim não é que ele se assemelha demais a uma das novelas que o diretor emplacou na emissoras de TV por onde passou. O filme peca principalmente porque tem uma trama essencialmente emocional, mas a direção não sabe dar o tom adequado em nenhuma cena. Além de idealizar a personagem, estereotipar sua relação com Luiz Carlos Prestes, não atingir profundidade sob nenhum prisma, Olga é cinema sem emoção, não sabe nem domar suas bases para emocionar o público. O excesso de gastos com a produção exauriu qualquer chance de criatividade e competência da direção. A elogiada fotografia não é mais novidade em lugar nenhum e não salva o filme da apatia. Outro ponto bastante incômodo é a performance efusiva de Camila Morgado, que acha que provavelmente acredita que interpretação é sinônimo de falar grosso. Em todas as suas cenas, a moça nos serve de olhos esbugalhados, voz empostada e muita agressividade. Diante do exagero da atriz, o revolucionário bonzinho de Caco Ciocler parece muito mais crível.

OLGA
Olga, Brasil, 2004.
Direção: Jayme Monjardim.
Roteiro e Produção: Rita Buzzar, baseado no livro de Fernando Morais.
Elenco: Camila Morgado, Caco Ciocler, Fernanda Montenegro, Osmar Prado, Leona Cavalli, Murilo Rosa, Mariana Lima, Renata Jesion, Eliane Giardini, Jandira Martini, Guilherme Weber, Werner Schünneman, José Dumont, Odilon Wagner, Eliana Guttman, Sabrina Greve, Osmar Prado, José Carlos Machado.
Fotografia: Ricardo Della Rosa. Montagem: Pedro Amorim. Direção de Arte: Tiza de Oliveira. Música: Marcus Vieira. Figurinos: Paulo Lois. Site Oficial: www.olgaofilme.globo.com.

nas picapes: Build, Housemartins.

9 de set. de 2004

BAIXARIA NA NOITE CARIOCA

Ou: a revolta de um homem de coração partido pelo prêmio perdido



Cláudio Assis, o pernambucano que dirigiu Amarelo Manga, é mal-educado. Ontem, na entrega do tal do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, ele perdeu o troféu de melhor diretor para Jorge Furtado, de O Homem que Copiava, e Hector Babenco, de Carandiru. Este último foi a principal vítima da deselegância de Assis, o homem que não sabe perder. Ouviu, de braços cruzados, uma romaria de impropérios. Manteve a pose. Assis, como diria o policial da esquina, evadiu-se do local não sem antes despejar mais uma série de ataques e acusações ao prêmio (prêmio que foi receber, por sinal) e outro cineasta, Cacá Diegues. Bem, aqui o mérito não é a competência de Babenco ou Diegues. Sequer a de Assis. É a falta de educação. E mesquinhez de falar mal dos outros por não aceitar o resultado de um prêmio.

Este texto foi postado no dia 2 de outubro de 2003, na versão anterior do meu blog. Achei o momento pertinente para republicá-lo:

Oi... deixe eu me apresentar... o meu nome é Cláudio Assis. Eu sou pernambucano... e com muito orgulho!!! E trabalho com cinema. Sou cineasta. Um cineasta do caralho! Há uns quatro anos, fiz um curta chamado Texas Hotel, que mostrava a banda podre do Recife. Você viu? Porra, curta é foda. Ninguém consegue assistir. Foi por isso que eu resolvi fazer esse longa. Um filme pra mostrar a realidade, meu irmão! Eu tô aqui pra mostrar como a realidade desse Brasil é filha da puta e como todo mundo faz de tudo pra esconder isso. Quero mostrar os marginais, as ruas sujas, contar histórias de gente de verdade. Queria chamar atenção, bicho, mas não pra mim... pra bosta que é essa vida... Quero fazer cinema pernambucano, mostrar que Recife também tá no mapa e que o mapa tá rasgado e amassado. Foi bonito isso que eu disse, né? É claro que não dava pra colocar só atores de Pernambuco no filme, né? Ninguém iria prestar atenção. rapaz; ator chama atenção. Chamei uns caras foda, todos cult. Tem a Leona Cavalli (que tá foda, do caralho...), o Jonas Bloch (uma instituição viva, um papel corajoso...), a Dira Paes (a menina faz tudo no cinema nacional, bicho), o Chico Diaz (o alternativo favorito de todo mundo) e o Matheus... Matheus tinha que ter. Filme brasileiro sem o Matheus é melhor nem fazer. Ele tá do caralho no papel de uma bichinha afetada. O cara é muito bom. Os pernambucanos eu botei como coadjuvantes, sabe? Senão iriam me xingar, me acusar de fazer filme para paulista ver. Paulista o caralho, meu filme é pernambucano, nordestino, meu amigo, é nordestino. Eu salvei o cinema nordestino do marasmo intelectual. Vê se tem outro...

Como meu curta tinha uma idéia da porra, eu estiquei a história. Ficou do caralho. Todo mundo é perturbado, rapaz. Tem de tudo: de evangélica fervorosa a um cara que trepa com morto. Necrofilia, cara. Meu filme critica tudo. Ninguém mais faz isso, só eu. Eu cuidei de fazer com que a galera mandasse bem, queria todo mundo verdadeiro, real. Assista que você vai ver. Eu coloco umas imagens no meio das histórias par dar esse toque realista. Tem gente na favela, moscas nos meninos barrigudos, cachorros... tudo pro pessoal ver que tudo que tá ali é de verdade. Eu sou foda. Convenci até o Walter Carvalho a fazer a fotografia... Ele faz uns movimentos muitos loucos. Ficou bonito pra caralho. Tem umas cenas que eu filmei só pra chocar mesmo. Tem que chocar mesmo, né? Senão não é arte... Arte tem que ser provocativa, rapaz. Tem um close demorado numa buceta. E tem um boi sendo morto. Tem também uma cena de masturbação. Infalível. A galera fica louca. Nunca sabe como reagir... Eu queria que o brasileiro visse o que ninguém mostra. Meu filme, sem falsa modéstia, é bom pra caralho. Agora... vou te contar a minha idéia mais genial, meu irmão. Idéia. Eu coloco as minhas idéias no meio do filme. Tem umas frases no meio dos diálogos que eu coloco pra fazer a galera pensar, pra mostrar o que eu penso. Digo que o brasileiro se acostumou ao engodo, que os cabelos são idéias. E eu faço até uma pontinha, bicho. Hitchcock fazia, eu fiz também. Eu até tenho fala; digo assim: "a pureza é a maior forma de perversão". Frase do ca-ra-lho!!! Levei uns três dias pensando. É mais ou menos isso, tem muita coisa genial no filme, não dá pra lembrar de tudo... Do caralho, né? E o melhor, bicho, tão falando pra burro do filme. Xingando e elogiando. Eu queria é isso mesmo, rapaz. Fiz o povo pensar. Do caralho!!!

P.S.: este texto é uma obra de ficção.


AMARELO MANGA
Amarelo Manga, Brasil, 2003
Direção: Cláudio Assis.
Roteiro: Hilton Lacerda.
Elenco: Matheus Nachtergaele, Jonas Bloch, Dira Paes, Chico Diaz, Leona Cavalli, Conceição Camarotti, Cosme Prezado Soares, Everaldo Pontes, Magdale Alves, Jones Melo.
Fotografia: Walter Carvalho. Edição: Paulo Sacramento. Direção e Arte: Renata Pinheiro. Figurinos: Andrea Monteiro. Música: Jorge du Peixe e Lúcio Maia. Produção: Marcello Maia e Paulo Sacramento.

nas picapes: Fale Mal de Mim, dos Autoramas.


 
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