[f i l m e s d o c h i c o]

23 de fev. de 2003

Doze Homens e uma Sentença

Adaptar teatro para o cinema é muito difícil. Um bom texto pode ficar perdido na tela caso o cineasta não saiba respeitar as diferenças das linguagens. Sidney Lumet sabia disso e acertou a mão em Doze Homens e uma Sentença, que dirigiu em 1957, fazendo com que a fotografia ajudasse a contar a história, apoiada num texto excelente e num elenco de grandes interpretações.

O filme tem basicamente um cenário: uma sala onde doze homens têm que decidir se um rapaz suspeito de matar o próprio pai deve ou não ser condenado à morte. Há duas testemunhas convencidas da culpa do acusado. Tudo indica este caminho, mas não há certezas. Isso motiva um dos jurados (interpretado por Henry Fonda) a questionar a si mesmo e a seus colegas sobre a responsabilidade que o grupo tem nas mãos.

É justamente nesse ponto que Doze Homens e uma Sentença revela porque é um grande filme. Aqui, não importa o veredito, mas as convicções. O inconsciente coletivo inspira a vingança. Vingança de um homem que matou seu próprio pai. Os demais jurados resistem aos argumentos com base nas circustâncias e em seus desejos de justiça. Mas como decretar a morte de quem quer que seja se não há certeza? O que está em questão não é a pena de morte, mas algo mais sério: as decisões de cada um e como elas podem ser irreversíveis.

O texto, adaptado pelo próprio autor da peça, Reginald Rose, analisa a perigosa ingenuidade do senso comum e da frágil arrogância em determinar verdades e mentiras. O elenco é perfeito em mostrar um painel das diversidades presentes nos elementos sociais (que não são necessariamente norte-americanos ou dos anos 50; são universais). Lee J. Cobb, como o antagonista de Fonda, detém o melhor papel e a melhor interpretação do filme. Doze Homens e uma Sentença foge do universo dos dramas de tribunal porque é muito mais que um filme sobre uma vida. É um filme sobre a vida.

Doze Homens e uma Sentença
Twelve Angry Men, EUA, 1957.
Direção: Sidney Lumet.
Elenco: Henry Fonda, Lee J. Cobb, Martin Balsam, Ed Begley, E.G.Marshall, Jack Warden, John Fiedler, Jack Klugman, Ed Binns, Joseph Sweeney, George Voskovec, Robert Webber, Rudy Bond, James Kelly, John Savoca, Bill Nelson.
Roteiro: Reginald Rose, baseado em sua peça. Produção: Henry Fonda e Reginald Rose. Fotografia: Boris Kaufman. Edição: Carl Lerner. Direção de Arte: Robert Markel. Música: Kenyon Hopkins.

Adaptação.



A falta de criatividade já foi tema de muitas obras. Adaptação. (02), novo filme de Spike Jonze, é mais um delas. Uma das melhores. Aqui, o roteirista Charlie Kaufman está em crise porque não consegue ter boas idéias para adaptar para o cinema The Orchid Thief, da jornalista Susan Orlean, sua última encomenda. Kaufman enxerga o livro como um belo painel sobre a vida e as flores, mas acha que o que escreve não vai interessar ninguém e nem tampouco honrar as palavras da autora.

O roteirista tem que agradar sua editora, seu agente, seu público e ainda manter sua dignidade de artista criando um produto de qualidade, sem recorrer aos clichês que seu irmão gêmeo aprendeu num curso para fazer scripts cinematográficos. A cruzada de Kaufman esbarra em suas próprias limitações, seu medo do mundo e sua não aceitação de si mesmo. Sua história divide a tela com a da própria Susan, que descobre um mundo novo com seu entrevistado e termina se confrontando com sua realidade maçante. Aí o filme passa a ser sobre a adaptação das pessoas ao que reserva a vida.

O toque genial do roteiro, creditado aos gêmeos Charlie e Donald Kaufman, acontece justamente com a solução encontrada para o dilema do protagonista. Abandonar a perseguição pela criatividade e se entregar aos clichês. O modo como Spike Jonze e sua dupla de roteiristas resolve isso é de uma inteligência raramente vista no cinema atual, sobretudo no norte-americano. O final escolhido para o filme parece o abandono total da preocupação inicial do autor.

Nicolas Cage dividido em dois está no que talvez seja seu melhor momento no cinema. Meryl Streep e Chris Cooper também defendem seus personagens com perfeição. A ousadia de Charlie Kaufman e Spike Jonze não vê limites. Nem no impacto que sua adaptação terá sobre a autora do livro. Adaptação., o filme, exercita a metalinguagem ao mesmo tempo que investiga as possibilidades de cada um ao enfrentar seus próprios muros. Um filme sobre transformação e sobre os duelos invisíveis que travamos todos os dias.

Adaptação.
Adaptation., EUA, 2002
Direção: Spike Jonze
Elenco: Nicolas Cage, Meryl Streep, Chris Cooper, Tilda Swinton, Jay Tavare, Litefoot, Cara Seymour, Brian Cox, Maggie Gylenhaal, Ron Livinstone, Judy Greer, Rhegan Wallace, Doug Jones, Jane Adams, Stephen Tobolowsky, Curtis Hanson, Catherine Keener, David O. Russelll, John Cusack, John Malkovich, Spike Jonze, Lance Acord.
Roteiro: Charlie Kaufman e Donald Kaufman, baseados no livro The Orchid Thief, de Susan Orlean. Produção: Jonathan Demme, Edward Saxon, Vincent Landay. Fotografia: Lance Acord. Edição: Eric Zumbrunen. Direção de Arte: K. K. Barrett. Música: Carter Burwell. Figurinos: Ann Roth e Casey Storm.

21 de fev. de 2003

Uma Lição de Amor

Uma Lição de Amor

Adaptar Mário de Andrade requer um pouco de ousadia e pretensão. Um dos editores de maior e melhor currículo no Brasil, Eduardo Escorel escolheu Amar, Verbo Intransitivo para ser seu segundo filme como cineasta. A história acompanha a chegada da fraulein alemã vivida por Lilian Lemmertz à casa de uma família da classe alta, nos anos 20. A intenção é que ela seja a preceptora de Carlos, o filho adolescente, além de iniciá-lo sexualmente. Carlos é um menino feio, coisa que o ator escolhido para vivê-lo não deixa a desejar. Mas se o físico ajuda, a criação do personagem mais importante da história faz o contrário. Marcos Taquechel parece estar lendo todas as falas. Não existe interpretação. O contraste nas cenas com Lilian Lemmertz, excelente, suprime qualquer credibilidade no filme. A direção de atores parece descuidada. Não há brilho nos coadjuvantes e o filme só se sustenta na linda trilha criada por Francis Hime e no fato de Lilian Lemmertz ser uma atriz perfeita. Seus olhos sem brilho, de quem não tem chão certo ou esperança, entristecem e fazem pensar o que realmente vale a pena.

Uma Lição de Amor
Uma Lição de Amor, Brasil, 1975
Direção: Eduardo Escorel
Elenco: Lilian Lemmertz, Rogério Fróes, Irene Ravache, Marcos Taquechel, Maria Cláudia Costa, Magali Lemoine, Mariana Veloso, Roberta Olimpo, William Wu.
Roteiro: Eduardo Escorel e Eduardo Coutinho, baseado no livro Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade. Produção: Eduardo Escorel e Luiz Carlos Barreto. Fotografia: Murillo Salles. Edição: Gilberto Santeiro. Direção de Arte e Figurinos: Anísio Medeiros. Música: Francis Hime.

Quem Sabe?

Quem Sabe?



Numa época em que o cinema francês tenta ficar mais pop e ganhar mais espectadores (como em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain e Pacto dos Lobos, ambos de 2001), Quem Sabe? pode parecer antiquado. Mas quem conhece um pouco da obra de Jacques Rivette, um dos cinco pilares da Nouvelle Vague, diz que o filme está um passo à frente do seu cinema tradicional: comunica-se melhor com o espectador. Nunca havia visto um filme do diretor e Quem Sabe? me impressionou.

Para a pergunta do título, a resposta é: ninguém. Neste filme, Jacques Rivette coloca seis personagens com vidas cruzadas a questionar suas vidas e motivações. Jeanne Balibar interpreta a estrela francesa de uma trupe de teatro italiana (palmas para a globalização!). Sua volta a Paris, depois de três anos longe, desperta uma série de desencontros e descobertas para muita gente. Rever decisões, caminhos tomados ou sonhos suspensos abala os personagens, que tentam, das mais diversas maneiras, encaminhar suas vidas.

O elenco, encabeçado pela perfeição de Jeanne Balibar, encarna os personagens com a medida necessária, mergulhando nas confusões de cada um. O cineasta abre a colméia e remexe as abelhas como um sinal para o espectador. Para fazer pensar. Rivette reserva para si mesmo o papel de mostrar a situação, mas não interfere nos destinos dos personagens. A seqüência final, perfeita, mostra que olhar para trás revela, mas necessariamente não muda muita coisa.

Quem Sabe?
Va Savoir, França, 2001
Direção: Jacques Rivette
Elenco: Jeanne Balibar, Sérgio Castelitto, Marianne Basler, Hélène de Fougeroulles, Jacques Bonaffé, Bruno Todeschini, Catherine Rouvel, Claude Berri, Attilio Cucari, Bettina Kee, Lucianna Castelucci, Emmanuelle Vacca.
Roteiro: Jacques Rivette, Pascal Bonitzer e Christine Laurent. Produção: Martine Marignac. Fotografia: William Lubtchansky. Edição: Nicole Lutchansky. Direção de Arte: Manu de Chauvigny. Figurinos: Christine Laurent e Laurence Struz.

Prenda-me Se For Capaz

Prenda-me Se For Capaz



A sessão

Quinta-feira, 21h15, Frei Caneca Unibanco Arteplex, São Paulo. A fila era grande para a sala 3. Todos os tipos de espectadores queriam ver a pré-estréia do novo filme de Steven Spielberg, Prenda-me Se For Capaz. Havia os cinéfilos que freqüentam as mostras de cinema, os casais de namorados em busca de um programa, as mocinhas fãs do Leonardo Di Caprio e o senhor comum de meia idade que queria se divertir. Também havia uma geração inteira de clones: uma da Renata Sorrah, de cachecol e cabelo super penteado, um casal que eu achei ser meus amigos Patrícia e Vinícius e uma loirinha que queria muito, mas muito mesmo, ser a Gwyneth Paltrow em Os Excêntricos Tennenbaums (01), com suas meias xadrez até o joelho e sua saia colegial. Interessante, pensei. A fila começava a andar, todo mundo se acomodava na sala, que ficou praticamente lotada. Dois trailers: A Vida de David Gale, com Kevin Spacey e Kate Winslet, e o novo trailer de Hulk, mostrando a criatura em frames generosos. Atenção: o filme estava para começar.

O filme

Prenda-me Se For Capaz não tem cara de filme de Steven Spielberg. O cineasta, geralmente associado a extraterrestres, dinossauros ou arqueólogos aventureiros, parece bem distante do universo das pessoas reais, como Frank William Abagnale Jr, um dos maiores falsários da história dos Estados Unidos. Foi o livro dele, que conta a vida dele, que Spielberg escolheu para adaptar para o cinema no final do ano passado. História que chega às telas como um filme surpreendente.

O maior trunfo do cinema de Spielberg (e seu maior alvo de críticas também) é a simplicidade de seus filmes. Simplicidade na maneira de contar uma história em contraponto com os magnifícios recursos que consegue utilizar para tanto. Simplicidade que atrai e conquista o espectador. Talvez o cineasta nunca tenha sido tão simples como em Prenda-me Se For Capaz, mas é aqui que ele consegue um de seus maiores êxitos.

Frank é um anti-herói norte-americano. E Spielberg é um bom moço. A química improvável funciona graças ao amadurecimento do cineasta e seu desprendimento em adotar para si um protagonista fora-da-lei, ainda que ele que esconda uma motivação nobre: unir a família. O texto de Jeff Nathason, que adapta o livro, se conduz pelo humor e pela delicadeza, sorvidos até a última gota pela direção inteligente de Steven Spielberg. O cineasta aproveita cada detalhe, mostra cada pequena coisa, e cria o cenário perfeito para os atores.

Leonardo Di Caprio incorpora o espírito sem limites de Frank na sua melhor interpretação desde o já longínquo Gilbert Grape (93). Diferentemente de Gangues de Nova York (02), onde sua performance parece espontaneamente contida para deixar o verdadeiro astro Daniel Day-Lewis tomar conta, aqui é Di Caprio quem domina. O ator é a alma do filme, que dificilmente seria tão perfeito sem ele. Mas que também deve aos coadjuvantes. Tom Hanks é o opositor perfeito, o homem normal que também é agente do FBI. Ele foge de todos os estereótipos possíveis aqui (e são muitos e diversos), equilibrando o cômico e o sensível. Já sobre Christopher Walken há pouco a falar e sim a reverenciar. A cena do almoço entre pai e filho é uma das mais belas do cinema recente.

O ritmo e o clima são ágeis e leves, conduzidos pela deliciosa música do maestro John Williams e reproduzidos na bela direção de arte, nos figurinos e nas imagens. E é justamente a fotografia ensolarada de Janusz Kaminski que parece ter tomado conta do cineasta. Os anos 60 são uma época de explosão de cores e de luz. A alegria contagiante presente em cada momento de Prenda-me Se For Capaz é a do diretor em contar essa história. Uma brincadeira de verdade para o cineasta das brincadeiras. Termino de ver o filme com um sorriso no rosto. E acho que não fui só eu.

Prenda-me Se For Capaz
Catch Me If You Can, EUA, 2002
Direção: Steven Spielberg.
Elenco: Leonardo Di Caprio, Tom Hanks, Christopher Walken, Nathalie Baye, Martin Sheen, Amy Adams, James Brolin, Brian Howe, Frank John Hughes, Steve Astin, Chris Ellis, Nancy Lenehan, Elizabeth Banks, John Finn, Alex Hyde-White, Jennifer Garner, Ellen Pompeo.
Roteiro: Jeff Nathason,baseado no livro de Frank W. Abagnale e Stan Redding. Produção: Walter F. Parkes e Steven Spielberg. Fotografia: Janusz Kaminski. Edição: Michael Kahn. Direção de Arte: Jeaninne Oppewall. Música: John Williams. Figurinos: Mary Zophres.

20 de fev. de 2003

Quase Famosos

Quase Famosos



A música caminha comigo desde sempre. Desde Sonho Meu no carro do meu pai, indo de Recife para Maceió. Mas a minha música somente apareceu mais tarde, quase adulto. O rock invadiu minha alma no início dos anos 90, por vários caminhos e por todos os poros, mas especialmente depois de comprar Nevermind, do Nirvana, um disco que me preparou para o futuro e que me apresentou ao passado. Desde então, não só o rock me fascina. Mas as pessoas que o amam tanto quanto eu. Que amam o universo mágico que o conduz e no qual flutuamos todos bêbados de êxtase sonoro + algumas taças de vinho (ou algumas cervejas).

Adoro falar sobre música com quem sabe falar sobre música. Com quem conhece os discos do Pixies, com quem ainda ouve The Man Who Sold The World, do Bowie, ou não vive sem os Mutantes. Falar sobre música apaixonadamente é apaixonante. Saber falar assim é muito mais. Cameron Crowe é um homem que ama a música. Ela está em suas veias, em seu coração, na sua respiração. Mas se faltou talento para ser músico, sobrou para escrever sobre música. Primeiro, como jornalista. Depois, como roteirista e cineasta. O que era ensaiado em seus primeiros filmes, toma conta de toda a extensão da tela em Quase Famosos.

Assisti este filme pela primeira vez no meu primeiro dia como morador do estado de São Paulo, sozinho. O cinema não era dos melhores, mas o filme, este sim, era dos mais belos. Tem gente que não vê beleza no cinema contemporâneo que não tenha vestidos cheios de babados ou fotografias sombrias, edição corrosiva ou roteiros difíceis de entender. Eu vejo. Quase Famosos é um filme sobre amor, disfarçado de filme sobre música. Sobre a coisa mais importante na vida de alguém. Aquilo que motiva, que move, que serve de estopim. Meus olhos caminharam marejados o tempo inteiro nas duas horas de filme.

Minhas lágrimas raramente vêm a tona. Aqui não foi diferente. Mas tudo me emocionava. O amor de uma mãe por seus filhos. O amor de uma mulher por um homem. O amor entre um grupo de amigos. O amor de um menino pela música. Todas as pequenas demonstrações de amor. Quando a irmã de William Miller diz no seu ouvido, ao som de America, de Simon & Garfunkel, pra olhar embaixo da sua cama, que "aquilo vai te libertar", não dá pra imaginar a cena mágica que está por vir: a apresentação de um menino aos deuses.

Magia é o que liga cada cena deste filme. Magia de pessoas que, mesmo disfarçadas de personagens, são pessoas e fazem o que as pessoas fazem. E amam uma música boba com toda a força e amam uma banda como se não existisse mais nada. E amam um ao outro tanto e tão fortemente que o amor não deixa palavras virem à tona. Tanto que não conseguem falar porque a voz da gente embarga quando o amor é muito. Cameron Crowe ama tanto a música que não cria personagens neste filme. Cria pessoas. Pessoas que amam a música tanto quanto ele. Que se dedicam a isso. Seja fazendo música, seja falando sobre ela, seja estando perto das pessoas que fazem música ou que falam sobre ela. A cena completa de Tiny Dancer no ônibus, que aparece na versão do diretor, explica como alguns versos e uma melodia podem unir qualquer coisa, podem curar qualquer dor.

Quase Famosos
Almost Famous, EUA, 2000
Direção: Cameron Crowe
Elenco: Patrick Fugit, Kate Hudson, Billy Crudup, Frances McDormand, Zooey Deschanel, Noah Taylor, Philip Seymour Hoffmann, Fairuza Balk, Jason Lee, Anna Paquin, Michael Angarano, Jay Baruchel.
Roteiro: Cameron Crowe. Produção: Ian Bryce e Cameron Crowe. Fotografia: John Toll. Edição: Joe Hutshing e Saar Klein. Direção de Arte: Clay A. Griffith e Clayton Hartley. Figurinos: Betsy Heiman. Música: Nancy Wilson.

14 de fev. de 2003

Chegadas e Partidas

Chegadas e Partidas

O cinema norte-americano, no seu quase um século de longas-metragens, desenvolveu uma espécie de subgênero do drama que faz muito sucesso popular: uma espécie de pequeno melodrama interior, onde o espectador é tomado pela tristeza da vida de pessoas comuns que viveram grandes tragédias pessoais e buscam redenção. A fonte é, sem dúvida, o turbilhão de romances populares que invade todos os anos as livrarias norte-americanas. Romances como The Shipping News, de E. Annie Proulx, adaptado para o cinema em 2001.

Como a maioria dos pequenos melodramas interiores, Chegadas e Partidas, o filme, exagera nos traumas de seus personagens, sobretudo nos de seu protagonista, Kevin Spacey. Um pai que o maltratava, um emprego sem graça, uma mulher que leva homens pra casa, suicídio em família, filha vendida no mercado negro. E isso é o começo da história. Depois de tanta desgraça, há que se buscar a redenção. Eis que ele volta ao lugar onde seus antepassados viveram para construir uma nova vida... Premissa de quase todos os pequenos melodramas interiores.

O maior problema deste gênero de filmes é que ele está gasto. A eficiência que se conseguiu em Laços de Ternura (83), seu maior exemplar (um filme do qual eu não sou muito fã), dificilmente será repetida. Em Chegada e Partidas, não existe doença, mas uma dor incontrolável, que percorre todos os personagens. O problema é o excesso. A caracterização de Kevin Spacey é exagerada. Seu personagem é apresentado como um ser completamente patético. Tanto que não dá para se envolver tanto no seu drama com a esposa Cate Blanchett (melhor atriz do filme). E todos os coadjuvantes têm dramas pessoais de grandes proporções. Tudo soa falso, o que atrapalha o bom elenco. A exceção de Cate Blanchett, atores reconhecidamente bons como Julianne Moore, Judi Dench e o próprio Spacey nunca conseguem o tom certo para seus personagens. Percebe-se o esforço, que esbarra na fragilidade não só do roteiro como da própria história.

Lasse Hallström era um cineasta promissor. Minha Vida de Cachorro (85), feito ainda na Suécia, é um dos mais belos filmes sob a perspectiva de uma criança. Já nos Estados Unidos, Gilbert Grape (93) enchia os olhos, com um roteiro inteligente e sensível e ótimas interpretações. Mas seus últimos filmes são insípidos e inodoros. Só não se tornam invisíveis por causa das milionárias campanhas da Miramax para o Oscar. Em Regras da Vida (99), só se salvavam a interpretação de Michael Caine e belíssima trilha de Rachel Portman. Chocolate (00) é de uma nulidade sem precedentes. Rachel Portman salva o filme da destruição total mais uma vez. Em Chegadas e Partidas, a compositora não fez a trilha, aí não sobrou muita coisa além de uma bela paisagem e um monte de atores bons que lutam para dar verdade a personagens de mentira.

Chegadas e Partidas
The Shipping News, EUA, 2001
Direção: Lasse Halsström.
Elenco: Kevin Spacey, Julianne Moore, Judi Dench, Scott Glenn, Cate Blanchett, Pete Postlethwaite, Rhys Ifans, Gordon Pinsent, Jason Behr, Larry Pine, Alyssa Gainer, Kaitleen Gainer e Lauren Gainer.
Roteiro: Robert Nelson Jacobs, baseado no livro de E. Annie Proulx. Produção: Rob Cowan, Leslie Holleran, Linda Goldstein Knowlton e Irwin Winker. Fotografia: Oliver Stapleton. Direção de Arte: David Gropman. Edição: Andrew Mondsheim. Figurinos: Renne Erlich Kalfus. Música: Christopher Young.

11 de fev. de 2003

Gangues de Nova York

Gangues de Nova York



Sexta-feira desesperançada e uma pergunta: - vamos ver Gangues de Nova York? O Guilherme disse que sim. Fomos os dois ao Cinearte, no Conjunto Nacional, porque queríamos ver o filme numa tela grande - e aquela é enorme. Martin Scorsese é um cineasta de grande talento, mas - exceto por Taxi Driver - nunca me envolve como outros diretores. Fui assistir Gangues de Nova York esperando ver um filme grandioso, bem dirigido e com perfeição técnica, mas estava enganado. Além disso tudo, o novo filme de Martin Scorsese é genial.

O cineasta aproveita-se do cenário da guerra civil norte-americana, onde a intolerância racial e social moviam um país em formação, para contar uma pequena história de vingança pessoal. Houve quem achasse que esse microcosmo era o que era o filme. Foi quem não soube olhar nas entrelinhas e nem nos olhos de Daniel Day-Lewis, a encarnação da América. Envolto na bandeira do país, o maior ator do ano confessa: - eu sou quem eu sou por causa do medo que eu provoco nas pessoas. Metáfora?

Martin Scorsese narra o surgimento de uma cidade, a construção de uma nação a partir do choque entre as pessoas que ali estavam. O cruzamento de genes que determina o povo norte-americano é resultado de suas origens diversas. Aqui o cineasta presta uma homenagem ao povo de seu país. Mas Scorsese também lança farpas contra seu próprio umbigo. Gangues de Nova York é um exercício de reflexão sobre o papel que os EUA ocupam no mundo e sobre o que é não suportar diferenças. Sobre começar guerras por causa delas. Aqui o cineasta consegue ser tão atual como jamais pensaria em ser.

O roteiro, inteligentíssimo, de Jay Cocks (A Época da Inocência), Steven Zaillan (A Lista de Schindler) e Kenneth Lonergan (Conte Comigo), amarra tão bem essas duas premissas à história do órfão que volta para se vingar do assassino de seu pai que em momento algum Gangues de Nova York ganha ares de exaltação ao país ou de denúncia. Apesar das quase três horas de projeção, Scorsese salta os clichês e mantém uma narrativa acelerada, mas completamente integrada ao filme, que alcança a perfeição técnica em quase todos os prismas. Na fotografia azulada de Michael Ballhaus, na edição agitada de Thelma Schoonmaker, na exuberante reconstituição de época de Dante Ferretti e Sandy Powell. Gangues de Nova York é um filme de época moderno. Um épico interior. Um épico sem heróis. Um épico que não épico. Um dos melhores filmes de seu diretor. Um dos maiores clássicos do cinema recente. Principalmente porque tem gente que não percebe isso.

Gangues de Nova York
Gangs of New York, EUA/Alemanha/Itália/Grã-Bretanha/Holanda, 2002
Direção: Martin Scorsese.
Elenco: Daniel Day-Lewis, Leonardo Di Caprio, Cameron Diaz, John C. Reilly, Jim Broadbent, Brendan Gleeson, Liam Neeson, Henry Thomas, Gary Lewis, Martin Scorsese.
Roteiro: Jay Cocks, Steven Zaillan e Kenneth Lonergan. Produção: Alberto Grimaldi e Harvey Weinstein. Fotografia: Michael Ballhaus. Edição: Thelma Schoonmaker. Direção de Arte: Dante Ferretti. Figurinos: Sandy Powell. Música: Howard Shore. Canções: U2, Peter Gabriel, Afro Celt Sound System.

O Pianista

O Pianista



Roman Polanski construiu sua carreira e ganhou respeito porque sua filmografia foge do lugar comum através de narrativas inovadoras e temáticas originais. É assim no místico e macabro O Bebê de Rosemary (68) ou em O Inquilino (76) ou no noir reciclado de Chinatown (74). Sua marca aparece até na comédia A Dança dos Vampiros (67). Provocação, ousadia, atrito. Polanski revelou-se um grande cineasta que detém o dom de saber contar uma história que vai além.

O Pianista, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, é um filme de Roman Polanski. Como em todos os seus outros filmes, o cineasta mostra que sabe contar uma história, mas aqui ele não vai além. Este é um filme sentimental, um filme do coração, uma obra que cativa pela sensibilidade. Polanski adapta um livro sobre como um judeu polonês escapa da morte durante a Segunda Guerra, história que muito se assemelha a sua. Mas faz isso da forma mais convencional que poderia. O Pianista é um grande filme, sobretudo no sentido épico e grandioso que faz A Lista de Schindler (93), de Steven Spielberg, e Fugindo do Inferno (63), de John Sturges, serem grandes filmes.

Polanski dirige bem os atores, recria lindamente a Polônia dos anos 40 e conta uma bela história. Uma bela história que poderia ser contada por outro bom cineasta. Em A História Real (99), David Lynch abandona sua tradicional desconstrução narrativa e conta uma história simples de uma forma simples. Mas A História Real guarda uma semelhança gigantesca em relação aos outros filmes de Lynch. Aqui os personagens estão tão à margem de tudo quanto em qualquer outro longa-metragem do cineasta. Não é o caso de O Pianista.

Talvez Roman Polanski tenha escolhido o projeto porque seria uma oportunidade de olhar para trás. Para seu próprio passado. Talvez porque ache importante denunciar os desmandos nazistas mais uma vez. Talvez simplesmente porque achou que a história era boa e merecia ser contada no cinema. Talvez porque o cineasta já tenha 70 anos e acredite que chegou a hora de parar de inovar e fazer o que muitos podem enxergar como um filme sério. Pessoas como os membros da Academia, que devem indicar o filme em várias categorias do Oscar deste ano. Oscar que nunca ganhou e que ficou cada vez mais longe quando o cineasta foi convidado a se retirar dos EUA depois de um escândalo sexual com uma menina de 13 anos.

Em O Pianista, o diretor marginal vira cineasta clássico e abraça a grandiosidade. Não é um filme ruim, muito pelo contrário. É um filme bom, mas não parece um filme de Roman Polanski. Isso é ruim? Não necessariamente.

O Pianista
The Pianist, 2002, França/Grã-Bretanha
Direção: Roman Polanski.
Elenco: Adrien Brody, Emilia Fox, Michal Zebrowski, Ed Stoppard, Maureen Lipman, Frank Finaly, Jessica Kate Meyer, Julia Rayner, Wanja Mues, Zbigniew Zamachowski.
Roteiro: Ronal Harwood, baseado no livro de Wladislaw Szpilman. Produção: Robert Benmussa, Roman Polanski e Alain Sarde. Fotografia: Pawel Edelman. Edição: Hervé de Luze. Direção de Arte: Alan Starski. Figurinos: Anna B. Sheppard. Música: Wojciech Kilar.


 
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