[f i l m e s d o c h i c o]

31 de jul. de 2003

A VIAGEM DO CHIHIRO



A liberdade da mente de uma criança permite viagens inimagináveis para uma pessoa adulta. Criança é livre para vôos imaginários em terras desconhecidas com seres fantásticos. Livre de padrões e de limites que o adulto constrói para cercear sua vida ao que se entende como real. Criança não precisa do real. Criança não precisa de muros. Pode ver fadas e guerreiros montados em dragões alados. Pode sumir e aparecer em outros lugares. Pode brincar de ser outra pessoa. De ser herói.

Os filmes de animação, curtos ou longos, sempre ajudaram a criança a compor seu imaginário de mitologias. Na cultura ocidental, isso se traduz em histórias mágicas, mas que estão presas a fórmulas que terminam em lições e que deixam personagens estereotipados. A Viagem de Chihiro é um filme japonês. Seu realizador, Hayao Miyazaki, um nome conhecido da animação daquele país. Uma animação que se constrói com base na cultura oriental, que, como as crianças, é livre de um exército de amarras.

Aqui, não há moral da história. Uma garota embarca num mundo encantado e encontra seres diferentes e uma nova organização social. Tudo mágico. Tudo flutua. Ela entra e procura o caminho para sair. Não é preciso seguir estradas de tijolos amarelos ou encontrar magos. Basta continuar a brincadeira. Uma brincadeira que muito adulto ocidental não deve entender. Porque não tem grandes descobertas, grandes objetivos. A não ser o de fazer a sua imaginação se expandir e o seu coração dilatar.

A Viagem de Chihiro
Sen to Chihiro no kamikakushi, Japão, 2001
Direção e Roteiro: Hayao Miyazaki (Cindy Davis Hewitt e Donald H. Hewitt, na adaptação para o inglês).
Elenco: Daveigh Chase, Jason Marsden, Suzanne Pleshette, Michael Chiklis, Lauren Holly, John Ratzenberger,Tara Strong, Susan Egan, Colleen O'Shaughnessey, David Ogden Stiers..
Produção: Toshio Suzuki. Direção de Arte: Norobu Yoshida. Edição: Takeshi Seyama. Música: Jô Hisaishi.

30 de jul. de 2003

UMA MULHER É UMA MULHER



Em 1939, o cartaz da então noca comédia de Ernst Lubitsch, Ninotcka, anunciava: Garbo laughs. Greta Garbo, a dona do I want to be alone, explodia numa gargalhada numa das cenas do filme. A situação era tão inusitada, tal era a mística em torno da sisudez da atriz, que virou o principal chamariz para Ninotchka. O cartaz de Uma Mulher é uma Mulher, segundo filme de Jean-Luc Godard, poderia tranqüilamente trazer: Godard ri. Antes de embarcar no hermetismo que viria a se tornar característica dfundamental de sua obra, o cineasta permitiu a si mesmo um momento Ninotcka.

Uma Mulher é uma Mulher é uma comédia que se alimenta do mesmo espírito das comédias maluquinhas que deram o tom do humor entre o final dos anos 50 e o início dos 60, como aquelas que consolidaram o mito Audrey Hepburn. A história é simples: Anna Karina quer ter um bebê. O marido Jean-Claude Brialy não. Ela insiste e, diante de uma nova recusa, tenta viabilizar a idéia com outros, entre eles Jean-Paul Belmondo. Se tivesse surgido nos Estados Unidos, seria uma brincadeira divertida. Mas um diretor como Godard jamais deixaria sua marca passar incólume.

Godard brinca o tempo todo. Brinca com o tempo. Brinca com o todo. A montagem acelera e desacelera o ritmo do filme, sempre negando o padrão da seqüência anterior. A música vai e vem, deixando para o espectador a sensação de estar a mercê do divertido jogo criado pelo diretor. Não como saber o que virá. Anna Karina e Jean-Claude Brialy, numa química perfeita, entram na brincadeira. O espírito livre de uma recém-iniciada década de 60 conduz suas interpretações. Brialy, não raro, parece estar anunciando o Antoine Doinel de Beijos Proibidos (68) e Domicílio Conjugal (70).

Truffaut, por sinal, ganhas duas pequenas homenagens. Belmondo encontra Jeanne Moreau num bar e pergunta: "ainda está com Jules e Jim?". Em seguida, Anna Karinaé atingida por balas imaginárias saídas dos dedos de uma amiga e lembra que Charles Aznavour estava genial em Atirem no Pianista (60). Bom ver que Godard sabe ter humor quando quer. Um cineasta do talento dele poderia se permitir rir de vez em quando. Mesmo que seja num filme sem grandes pretensões. Mesmo que seja só de vez em quando.

Uma Mulher é uma Mulher
Une Femme est une Femme, França, 1961
Direção e Roteiro: Jean-Luc Godard.
Elenco: Anna Karina, Jean-Claude Brialy, Jean-Paul Belmondo, Marie Dubois, Ernest Menzer, Marion Sarraut, Gisèle Sandré, Nicole Paquin, Jeanne Moreau, Dominique Zardi, Henri Attal.
Produção: Carlo Ponti e Georges de Beauregard. Fotografia: Raoul Coutard. Direção de Arte: Bernard Evein. Edição: Agnès Guillemot e Lila Herman. Música: Michel Legrand. Figurinos: Jacqueline Moreau.

28 de jul. de 2003

KAMCHATKA



Golpe Militar, Argentina, 1976. A mãe tira o filhos da escola. Os três se encontram com o pai e se mudam para o interior. Kamchatka mostra como a política mudou a vida de uma família. Geograficamente e emocionalmente. Mas o filme passa longe do discurso político, panfletário, engajado. É sobre pessoas que se amam, sobre família. Nunca se sabe qual o crime, o porquê da perseguição. Basta saber que eles têm que fugir.

A ditadura corrobora para a cristalização do núcleo familiar. Pais e filhos ficam mais próximos que nunca, na tentativa de sobreviver. Irmão e irmão, mais cúmplices. E o jovem que chega vira um amigo. Kamchatka também é um filme sobre perdas. Mas não necessariamente sobre a perda da liberdade. É sobre as perdas nossas de cada dia. O colega, a escola, o novo amigo. Tudo que vem e vai porque a vida é assim. E é sobre como lidar com essas perdas. Entendê-las mesmo sem aceitá-las.

Marcelo Piñeyro mais uma vez demonstra delicadeza e intensidade. Adota o filho mais velho como protagonista e olha para o mundo pelos olhos dele. O pequeno ator sabe sofrer, ser denso, ser frio e nunca deixa de ser criança. Sabe que a vida nem sempre funciona do jeito que se quer. Cuida do irmãozinho encantador que faz xixi na cama, como se fosse soldado em missão de honra. Fica pronto em silêncio para uma batalha que nunca travará. Ou que o acertará de outra maneira. Kamchatka é sobre pai, mãe, filhos e irmãos. Sobre amar sobre todas as coisas. Poesia não precisa de palavras. Basta um tapete e muitas estrelas, um rosto grande colado num rosto pequeno, uma mão sobre uma mão sobre outra mão.

Kamchatka
Kamchatka, Argentina/Espanha, 2002
Direção: Marcelo Piñeyro.
Elenco: Matías Del Pozo, Milton De La Canal, Ricardo Darín, Cecilia Roth, Héctor Alterio, Fernanda Mistral, Tomás Fonzi, Mónica Scapparone, Evelyn Domínguez, Leticia Brédice, Nicolás Cantafio, Gabriel Galíndez, Maria Socas, Juan Carrasco, Demián Bugallo, Oscar Ferrigno Jr.
Roteiro: Marcelo Piñeyro e Marcelo Figueras. Edição: Juan Carlos Macías. Produção: Pablo Bossi, Óscar Kramer e Francisco Ramos. Fotografia: Alfredo F. Mayo. Direção de Arte: Mark Tildesley. Música: Bingen Mendizábal. Figurinos: Ana Markarián .

27 de jul. de 2003

EXTERMÍNIO



Danny Boyle é tão importante para o cinema nos anos 90 quanto Quentin Tarantino. Seu segundo longa-metragem, Trainspotting (96), perde apenas para Pulp Fiction (94) em termos de influência para a década passada, estabelecendo um padrão de cinema jovem que viria a ser copiado à exaustão. Na obra de Boyle, a temática não é uma, são muitas. Depois de uma deliciosa comédia com personagens maluquinhos (Por Uma Vida Menos Ordinária, 97) e um filme cabeça sem muito a dizer (A Praia, 00), o cineasta britânico bebe da fonte dos filmes B sobre um futuro caótico em Extermínio, um dos maiores achados dos últimos tempos.

Extermínio começa com um grupo de ativistas tentando libertar chimpanzés de um laboratório de pesquisas. Os animais são cobaias num tratamento contra a raiva. Eles desenvolvem a doença em níveis elevadíssimos. Os bichos saem da jaula e a doença também. Devasta a Inglaterra, criando um cenário de destruição e abandono. As pessoas são mortas pelas outras ou transformadas numa espécie de zumbis assassinos. A civilização rui. As poucas pessoas que ficam incólumes sobrevivem escondidas, fugindo como podem.

Danny Boyle conduz sua história com convicção. Fez uma quase ficção-científica com um pé nos filmes B e sabe disso. Assume sua obra assim. Utiliza as possibilidades da câmera digital para criar uma fotografia mais crua, que possa transmitir a atmosfera que quer passar para o filme. A edição, rápida e sem padrões, parece a de programa ao vivo de TV. Há momentos de trilha sonora salvadora, messiânica, mas o que mais se escuta no filme são justamente seus silêncios. O clima reforça o universo caótico retratado na tela e faz imaginar como seria perder nossos padrões.

O espectador submerge numa caçada por suas prioridades, redefine o que é mais importante: sobreviver ou ficar bem. Tal qual fazem os personagens. Boyle é cruel com o mundo que retrata. Mostra como as pessoas podem abandonar tudo que já lhes foi importante para correr em busca de si mesmas. Para se manterem vivas. Há duas maneiras para gostar de Extermínio: como filme B que faz pensar ou como diversão pura. Os dois caminhos são válidos.

Extermínio
28 Days Later, Grã-Bretanha/Holanda/EUA, 2002
Direção: Danny Boyle.
Elenco: Cillian Murphy, Naomie Harris, Megan Burns, Brendan Gleeson, Noah Huntley, Christopher Dunne, Emma Hitching, Christopher Eccleston, Leo Bill, Junior Laniyan, Ray Panthaki, Sanjay Ramburuth, Marvin Campbell, Luke Mably, Stuart McQuarrie, Ricci Harnett.
Roteiro:Alex Garland. Edição: Chris Gill. Produção: Andrew Macdonald. Fotografia: Anthony Dod Mantle. Direção de Arte: Mark Tildesley. Música: John Murphy e Brian Eno (canção). Figurinos: Rachael Fleming.

PASSION



Todo filme deveria contar uma história, mas Jean-Luc Godard tem problemas muito maiores para perder tempo com uma bobagem como esta. Agora que seus filmes voltam em massa para os cinemas brasileiros, isso fica mais evidente mais uma vez. O cineasta do maravilhoso Acossado (59, maravilhoso provavelmente por causa do argumentista François Truffaut) é um dos cinco nomes chaves da nouvelle vague, o movimento francês que mudou o cinema. Começou revolucionando tudo: narrativa, linguagen, edição. Tomou tanto gosto que tenta se superar a cada filme desde então. Nos anos 60 e 70, isso era cumprir seu dever, mas Godard chegou aos 80, aos 90, ao século 21.

Passion, de 1982, é um exemplo do quanto o franco-suíço é talentoso em tecer elaborados diálogos consigo mesmo. O filme deveria mostrar as dificuldades de um cineasta em rodar um filme sobre grandes mestres da pintura. Deveria. Hermético, teatral e exageradamente masturbatório, o filme de fecha num conjunto de códigos que nem o espectador mais esperto deveria perder tempo em decifrar. A mania onanista de Godard conversar consigo mesmo desperdiça Isabelle Huppert, Hanna Schygulla e Michel Piccoli. E isso ninguém merece.

Passion
Passion, França/Suíça, 1982
Direção, Roteiro e Edição: Jean-Luc Godard
Elenco: Isabelle Huppert, Hanna Schygulla, Michel Piccoli, Jerzy Radziwilowicz, László Szabó, Jean-François Stévenin, Patrick Bonnel, Sophie Lucachevski, Barbara Tissier, Magali Campos, Myriem Roussel, Serge Desarnanos, Ági Bánfalvi, Ezio Amrosetti, Manuelle Baltazar, Sarah Cohen-Sali, Sarah Beauchesne, Bertrand Theubet.
Produção: Armand Barbault, Catherine Lapoujade e Martine Marignac. Fotografia: Raoul Coutard. Direção de Arte: Jean Bauer e Serge Marzolff. Música: Antonín Dvorák, Gabriel Fauré, Léo Ferré, Wolfgang Amadeus Mozart, Maurice Ravel e Ludwig van Beethoven. Figurinos: Christian Gasc e Rosalie Varda.

23 de jul. de 2003

MARIE-JO E SEUS DOIS AMORES



Marie-Jo é uma mulher que tem um amante. Mas no seu caso não existe traição na sua concepçãao mais rasteira. Marie-Jo ama seu marido, com quem vive há anos e tem uma filha que acaba de chegar à idade adulta. Marie-Jo ama igualmente seu amante, sem o qual não consegue viver. Amar dois homens divide o tempo e a alma de Marie-Jo. Ela se sente completa e feliz apenas no momento em que faz amor com um dos dois. Robert Guédiguian, o cineasta e o escritor deste filme, parte de uma premissa difícil de fugir do clichê, mas consegue resultados surpreendentes. Marie-Jo e Seus Dois Amores é um filme sobre preconceitos e pré-conceitos. Sobre o quanto se consegue amar. E sobre como fazer para amar plenamente. Ariane Ascaride é uma atriz de grande talento. Encarnar uma personagem tão rica quanto Marie-Jo é tarefa para poucas. Mas a atriz é intensa o tempo inteiro. É cheia. Perto do fim, o filme parece caminhar para uma solução fácil, mas rapidamente se vê que o que se espera pode não vir à tona.

Marie-Jo e Seus Dois Amores
Marie-Jo et ses 2 Amours, França, 2001
Direção e Produção: Robert Guédiguian
Elenco: Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Julie-Marie Parmentier, Jacques Boudet, Yann Trégouët, Frédérique Bonnal, Souhade Temimi, Maya Seuleyvan, Frédéric Garbe, Danielle Stefan, Jacques Germain, Axel Köhler.
Roteiro: Robert Guédiguian e Jean-Louis Milesi. Christine Vachon. Fotografia: Renato Berta. Direção de Arte: Michel Vandestien. Edição: Bernard Sasia. Figurinos: Catherine Keller.

SINBAD, A LENDA DOS SETE MARES



A Dreamworks surgiu para quebrar o monopólio da Disney no mundo da animação. Chegou com o inteligente Formiguinhaz, o épico e moderno O Príncipe do Egito e chegou ao ápice de sua produção com Shrek. Mas uma crise criativa deve ter tomado conta dos estúdios de Steven Spielberg. Sinbad, a Lenda dos Sete Mares segue uma fórmula gasta da Disney, abandonada pelo Mickey Mouse há tempos. Não tem fôlego, não tem gás, não tem personagens bem trabalhados. O roteiro não aproveita o bom personagem e, mesmo o uso de computação gráfica, não esconde o quão envelhecida é a proposta original. A liçãozinha de moral do final é óbvia e sem graça. Dá pra se divertir? Dá, mas muito pouco. Exigência demais para um filme destinado às crianças? Nunca. Assista Procurando Nemo e veja o que é fazer um clássico para os tempos atuais.

Sinbad, a Lenda dos Sete Mares
Sinbad: Legend of the Seven Seas, EUA, 2003
Direção: Patrick Gilmore e Tim Johnson
Elenco: Brad Pitt, Catherine Zeta-Jones, Michelle Pfeiffer, Joseph Fiennes, Dennis Haysbert, Timothy West, Adriano Giannini, Raman Hui, Jim Cummings, Andrew Birch, Chris Miller.
Roteiro: John Logan. Produção: Jeffrey Katzenberg e Mireille Soria. Direção de Arte: Raymond Zibach. Música: Harry Gregson-Williams. Edição: Tom Finan. Direção de Arte: Seth Engstrom e David James.

18 de jul. de 2003

LONGE DO PARAÍSO



Cada homem guarda um segredo. O segredo de Frank Whitaker é que ele nunca amou ninguém de verdade. Quando ele finalmente descobre seu primeiro amor, já é tarde. Frank está casado com uma esposa adorável, tem dois filhos educados, mora numa bela casa num belo bairro de uma bela cidade, tem um ótimo emprego. Sua vida supera o sonho de qualquer homem comum, sua vida é o próprio sonho americano. A vida de Frank apenas não é suficiente para ele mesmo, que tenta seguir feliz, mas termina mergulhado na angústia de viver o que não é. Angústia que sufoca seu peito e explode pela garganta e que move Longe do Paraíso.

Frank vive nos anos 50, aqueles em que roteiristas e diretores de cinema foram perseguidos por serem comunistas. Muitos nem eram. Na época em que ele vive, não há espaço para relacionamentos entre brancos e negros. A convivência é harmoniosa, mas algo como apertar mãos era improvável e inaceitável. Cathy, a esposa de Frank, é uma pessoa quase perfeita. Mulher bonita, esposa dedicada, mãe cuidadosa, cidadã exemplar. Ela tem poucos preconceitos. Conversa muito com seu jardineiro negro. Para ela, não existe desigualdade. Para os outros, existe.

Cathy é tão pura que, ao flagrar seu marido com um novo amor, o perdoa e tenta fazer de tudo para ajudá-lo a cessar sua triste sina de busca por algo proibido. Continua carinhosa, educada, elegante, mas percebe que sua doce vida tinha a mesma consistência de um sonho. Cathy guarda as coisas para dentro de si. Ela explode para dentro. Nem a melhor amiga consegue quebrar a barreira que ela cria para preservar sua vida, sua privacidade, sua história disfarçadamente perfeita. Cathy, assim como Frank, conversa apenas consigo mesma. Nem percebe, mas vive de aparências. Quando seu mundo colorido começa a rachar, procura alento numa possibilidade de carinho difícil de alcançar com plenitude.

Todd Haynes é um diretor imprevisível. Veneno (91), A Salvo (95) e Velvet Goldmine (98) são filmes muito diferentes entre si, mas guardam semelhanças. Seus personagens são solitários. De uma forma ou de outra. Em Longe do Paraíso, Frank e Cathy não fogem á regra. Gostam um do outro, vivem bem, mas se contentam com pouco. Dennis Quaid, um ator que nunca demonstrou talento especial, toma para si um dos papéis mais difíceis do recente cinema norte-americano. Difícil de sair do clichê, mas Quaid o faz com muita competência.

Do outro lado, está Julianne Moore, a melhor atriz dos dias de hoje. Aqui, ela interpreta com os olhos, com a boca, com as mãos. Não existe muito que falar. Cathy, sua personagem, fala pouco. Julianne consegue o improvável: sua atuação é intensa e discreta. Não rouba a atenção do filme, apesar de ser sua mola propulsora. Julianne Moore está nas árvores coloridas pela esplêndida fotografia, na classe da direção de arte e dos figurinos, na consistência de uma das melhores trilhas sonoras do ano. Ou dos últimos anos. Os tons de sua atuação são tão diversos quanto as cores do filme.

As pessoas cobram muito que as coisas aconteçam em Longe do Paraíso. pouca gente entende que o filme é sobre coisas que não acontecem. Com sutileza, Todd Haynes mostra como as pessoas falham, como a idéia de uma vida feliz é frágil, como tudo pode ter a consistência de um sonho. Um sonho americano.

Longe do Paraíso
Far From Heaven, EUA, 2002
Direção e Roteiro: Todd Haynes
Elenco: Julianne Moore, Dennis Quaid, Dennis Haysbert, Viola Davis, Patricia Clarkson, James Rebhorn, Bette Henritze, Michael Gaston, Ryan Ward, Lindsay Andretta, Jordan Puryear, Kyle Timothy Smith, Celia Weston, Barbara Garrick.
Produção: Christine Vachon. Fotografia: Edward Lachman. Direção de Arte: Mark Friedberg. Música: Elmer Bernstein. Edição: James Lyons. Figurinos: Sandy Powell.

17 de jul. de 2003

POR UM FIO



O novo filme de Joel Schumacher dividiu opiniões. Uns o chamam de genial e outros de uma boa idéia desperdiçada. Mas de uma coisa ninguém duvida: o cineasta que destruiu a carreira cinematográfica do Batman fez um filme delicioso. Colin Farrell interpreta muito bem um agente que faz de tudo para vender seus clientes e vender sua própria imagem. Mente sem culpa. Inclusive para a própria esposa, para a namoradinha e para o estagiário que escraviza. Todos os dias, faz ligações de uma mesma cabine telefônica. O que ele não sabe é que alguém o vigia passo a passo.

Farrell se descobre preso numa cabine telefônica pelas chantagens do seu perseguidor. Mais que espacial, sua prisão é emocional. O agente não consegue escapar da teia que ele mesmo teceu. O jogo entre caça e caçador é tenso e instigante, leva a níveis quase insuportáveis de pressão. O roteiro de Larry Cohen (o improvável diretor do improvável clássico trash Nasce Um Monstro) é muito mais psicológico que de ação.

Por Um Fio invade a mente do protagonista e o exaure. Faz o mesmo com o espectador. Com uma edição paralela, o filme é plasticamente impecável e ainda consegue modernizar um velho recurso de linguagem: as janelinhas. Se o final não é aquele que você esperava (ou que não esperava), bobagem. O que importa é que Por Um Fio é tão instigante e perturbador que até chegar no final, ele já terá valido a pena. E muito.

Por Um Fio
Phone Booth, EUA, 2003
Direção: Joel Schumacher
Elenco: Colin Farrell, Forest Whittaker, Radha Mitchell, Katie Holmes, Paula Jai Parker, Kiefer Sutherland, Arian Ash, Tia Texada, John Enos III, Richard T. Jones, Keith Nobbs, Dell Yount, James MacDonald.
Roteiro: Larry Cohen. Produção: David Zucker. Fotografia: Matthew Libatique. Direção de Arte: Andrew Lars. Música: Harry Gregson-Williams. Edição: Mark Stevens. Figurinos: Daniel Orlandi.

O HOMEM QUE COPIAVA



Fazer graça em filme sério não é pra todo mundo. Jorge Furtado é um homem inteligente. Salvou a TV brasileira do marasmo das telenovelas e, em quase tudo que faz, consegue bons resultados. O melhor deles é Ilhas das Flores, curta-metragem de 1992 que figura tranqüilamente entre os melhores já feitos no Brasil. O filme inaugura uma linguagem de edição que virou marca do diretor: a do uma-coisa-leva-a-outra. A estréia de Furtado nos longas, Houve Uma Vez Dois Verões (02), é um filme pequeno, simples e despretensioso, que, com delicadeza e inteligência, supera qualquer história sobre adolescentes apaixonados.

O Homem que Copiava, novo trabalho do cineasta, segue o mesmo estilo de suas outras obras. Linguagem pop e muita informação. O filme conta a história de André (Lázaro Ramos), um operador de xerox solitário apaixonado pela vizinha da frente, preso numa rotina que envolve o chefe desconfiado, a colega gostosona, o amigo marginal e a mãe que nunca fala. André constrói sua história através de fragmentos. Como constrói na sua mente o quarto de sua amada, que vê apenas por uma fresta na janela. O pouco que sabe do mundo são os pedaços de coisas que lê quando está na fotocopiadora.

O filme de Jorge Furtado começa simpático e preso a uma fórmula eficiente que começa a se gastar. Mas muda aos poucos. Furtado sabe como apaixonar. Ele envolve os espectadores com uma história simples e com uma maneira simples de contar uma história. Invade os personagens, sobretudo o protagonista, navegando por seus sonhos solitários, suas tímidas perspectivas e seus passos atrapalhados. Passa de comédia inteligente a filme inteligente. Trafega com facilidade pelo humor e pelo drama. Faz isso sem sentir. Naturalmente. André e sua namorada, mais que um amor, querem liberdade. Criar asas. Buscar algo mais. Que não está ali. Que não dá para definir. Que não se explica. Que talvez nem exista.

Talvez seja por isso que O Homem que Copiava seja tão significativo. À primeira vista, ele é uma comédia bobinha, que conta historinhas bobinhas. Mas basta virar a página para perceber um filme bonito e simples. Sobre a busca que cada pessoa faz de si próprio. Coisas que a gente não consegue explicar, mas que estão ali o tempo todo.

O Homem que Copiava
O Homem que Copiava, Brasil, 2003
Direção e Roteiro: Jorge Furtado
Elenco: Lázaro Ramos, Leandra Leal, Pedro Cardoso, Luana Piovani, Júlio Andrade, Kike Barbosa, Zé Adão Barbosa, Irene Brietzke, Renato Campão, Alexandre Cebola, Carlos Cunha, Renata de Lélis, Nélson Diniz, Paulo José, Pedro Furtado.
Produção: Nora Goulart e Luciana Tomasi. Fotografia: Alex Sernambi. Direção de Arte: Fiapo Barth. Edição: Giba Assis Brasil. Figurinos: Rô Cortinhas.

13 de jul. de 2003

AS PANTERAS
AS PANTERAS: DETONANDO



Fraquinho. As Panteras: Detonando é muito fraquinho. O filme do isso-lá-é-nome-de-diretor McG não se sustenta porque não tem roteiro. Ou tem. Muito mal escrito. Há uma preocupação tão imensa em ser engraçado e em conseguir efeitos tão especiais que se esquece de criar algo, no mínimo, plausível. Quase todas as seqüências têm algum momento virtual, no sentido mais literal da palavra. As cenas de ação são tão irreais que é impossível desfrutá-las livremente e não questionar sua autenticidade. Quando a virtualidade não é nas seqüências de luta, ela se apresenta no pouco caso com a história.

True Lies, o longa de James Cameron que transformou Arnold Schwarzenegger em agente secreto, é um ótimo filme. Por quê? Porque Cameron teve o cuidado de não exagerar nos efeitos visuais, que são de mentira (maravilhosamente de mentira), mas não são inacreditáveis. E porque entregou sua história para roteiristas que desenvolvem personagens e não apenas rascunham idéias. Cinema é magia, mentira, ilusão, diversão. O ex-diretor de videoclipes McG sabe disso, mas não tem muita noção do quanto pode ou deve iludir num filme.

As Panteras: Detonando segue a fórmula do longa original, justamente o que marca a estréia de McG como diretor de filmes para o cinema. É coerente em sua mistura de filme de ação e comédia de humor fácil. A questão é: isso é suficiente? Quando se resolve adaptar uma obra de referência, ícone de uma geração, como o seriado de TV As Panteras, deveria-se ter o mínimo de respeito ao original. E a versão para o cinema da história das três detetives não tem a mínima relação com suas inspiradoras.

As panteras do cinema são quase personagens de comédias pastelão. A bela Cameron Diaz faz questão de nos lembrar disso. Aqui só se usa a grife famosa. O ¿espírito¿ original se perde no vento. O seriado apresentava três detetives numa história policial, com toques de humor. Protagonizado por mulheres, ganhou um status diferente, charmoso, simpático e divertido. Farrah Fawcett, Jaclyn Smith e Kate Jackson, respectivamente Jill, Kelly e Sabrina, viraram mitos.

Mexer numa obra já existente e mudar tudo parece, no mínimo, injusto. No primeiro filme, a idéia original mostra menos diluída. A estréia no cinema é menos pretensiosa, mais simples e tem um ótimo Bill Murray no papel de Bosley (personagem herdado por um Bernie Mac muito do chato). A química entre Lucy Liu, Cameron Diaz e Drew Barrymore é boa, mas a necessidade de popularizar o filme o deixa simplório. Diaz, apesar do excesso do roteiro (que transformam sua personagem numa idiotona), é a melhor atriz. Simplesmente porque é a melhor atriz. Os vilões são legais, mas falta ser As Panteras.

O segundo longa não é de todo ruim. Muita gente faz alarde dos zilhões de referências pop que existem no filme (inclusive uma ponta da pantera original Jaclyn Smith). Há alguns momentos divertidos, mas, no conjunto, tudo é facilmente esquecível. A história é mal escrita e todos os personagens que não são integrantes do trio principal são tratados com descaso. Nem a volta de Demi Moore ao cinema, seis anos depois, merece destaque. A musa de Ghost (90), com corpo saído do formol, está mais linda do que nunca. E pior atriz do que nunca. Mas isso a gente perdoa porque é muito legal vê-la nas telas.

Aí vem a pergunta: será que isso é exagero? Será que dá para cobrar muito de um filme de verão norte-americano? Dá sim. Não é preciso ser tolerante com o que não é bom de verdade. E, nesse caso, os danos são irreparáveis porque os dois As Panteras tinham tudo para ser grandes filmes de ação e sua infantilização para ganhar mais público os deixa parcos. Se simpatia fosse suficiente para fazer um filme bom, As Panteras: Detonando seria excelente, mas como é preciso um pouquinho mais, ele não consegue nem ser regular. Isso, o primeiro já foi.

As Panteras
Charlie's Angels, EUA, 2000
Direção: McG
Elenco: Drew Barrymore, Cameron Diaz, Lucy Liu, Bill Murray, Sam Rockwell, Kelly Lynch, Tim Curry, Crispin Glover, Luke Wilson, John Forsythe, Matt LeBlanc, Tom Green, LL Cool J, Sean Whalen, Cheung-Yan Yuen.
Roteiro: Ryan Rowe, Ed Solomon e John August, baseados nos personagens criados por Ivan Goff e Bem Roberts para a série homônima de TV. Produção: Drew Barrymore, Leonard Goldberg e Nancy Juvonen. Fotografia: Russell Carpenter e Michael St. Hilaire. Direção de Arte: J. Michael Riva. Edição: Peter Teschner e Wayne Wahrman. Figurinos: John G. Aulisi.

As Panteras Detonando
Charlie's Angels: Full Throttle, EUA, 2003
Direção: McG
Elenco: Drew Barrymore, Cameron Diaz, Lucy Liu, Bernie Mac, Demi Moore, Robert Patrick, Crispin Glover, Luke Wilson, John Forsythe, Matt LeBlanc, John Cleese, Rodrigo Santoro, Justin Theroux, Shia LaBeouf, Ja'net DuBois, Cheung-Yan Yuen, Béla Károlyi, Eric Bogosian, Eve, Pink, Carrie Fisher, Ashley Olsen, Mary-Kate Olsen, Bruce Willis.
Roteiro: John August, Cormac Wibberley e Marianne Wibberley. Produção: Drew Barrymore e Leonard Goldberg. Fotografia: Russell Carpenter. Direção de Arte: J. Michael Riva. Edição: Wayne Wahrman. Figurinos: John G. Aulisi.

BETTY FISHER E OUTRAS HISTÓRIAS



Cinema francês: ame-o ou odeie-o. Difícil encontrar alguém que aposte no meio termo. Francês é sinônimo de inteligente e de chato. De profundo e de arrogante. De denso e de pretensioso. Claude Miller é um cineasta francês. Como os compatriotas, adora um mergulhinho psicológico em suas personagens, mas diferentemente de muitos deles, não faz filmes para si mesmo. Betty Fisher e Outras Histórias só é um filme difícil para quem tem preguiça de pensar.

A estrutura do filme engana o desavisado. Existe apenas uma grande história, mas Miller divide o longa em capítulos inexistentes, dedicados a cada um de seus personagens. As marcações que iniciam o que o cineasta apresenta como cada pequena história dão impacto ao longa, apesar de serem dispensáveis. A edição mostra Betty Fisher maior do que ele é, o que é um grande e eficiente truque, que não desmerece o filme.

Betty tem uma relação tumultuada com a mãe e tenta devolver para o filho tudo o que não teve. Mas um acidente impede seus planos e sua mãe precisa assumir seu verdadeiro papel. Sandrine Kiberlain (especialmente francesa em Tudo Bem, Até Logo) segura as pontas de sua Betty e Nicole Garcia demonstra a perturbação necessária para a mãe. O duelo calado das duas é o que move o filme. Falta de comunicação. Imagine o que Bergman faria. O romance de Ruth Rendell já tinha rendido um longa rodado nos EUA chamado Tree of Hands (89), com Helen Shaver e Lauren Bacall como mãe e filha.

O roteiro do próprio cineasta é inteligente. Os personagens são apresentados até o último momento do filme e sempre há alguma ação em andamento. As histórias paralelas fazem parte de uma trama universal. Todas são atrizes coadjuvantes da relação difícil que Betty tem com sua mãe. E todas são eficientes. Betty Fisher é um belo filme. Rendell arma uma teia de coincidências que se locupletam. Engrenagens. É uma favorita do cinema europeu, já adaptada por Pedro Almodóvar (Carne Trêmula, 97) e Claude Chabrol (Mulheres Diabólicas, 95). As mulheres sempre estão no centro de tudo. Afinal, é delas que tudo vem.

Betty Fisher e Outras Histórias
Betty Fisher et Autres Histoires, França, 2001
Direção: Claude Miller
Elenco: Sandrine Kiberlain, Nicole Garcia, Mathilde Seigner, Luck Mervil, Edouard Baer, Stéphane Freiss, Yves Jacques, Roschdy Zem, Consuelo De Haviland, Yves Verhoeven, Annie Mercier, Alexis Chatrian, Arthur Setbon, Pascal Bonitzer.
Roteiro: Claude Miller, baseado na novela Tree of Hands, de Ruth Rendell. Produção: Annie Miller. Fotografia: Christophe Pollock. Direção de Arte: Jean-Pierre Kohut-Svelko. Música: François Dompierre e Thom Yorke. Edição: Véronique Lange. Figurinos: Jacqueline Bouchard.

11 de jul. de 2003

FILHOS DO PARAÍSO



Filhos do Paraíso é um filme lindo. Majid Majidi, cineasta de Baran, lançado há pouco tempo no Brasil, faz nesse longa anterior tudo o que não consegue fazer no trabalho mais recente. A história dos dois irmãos que têm que dividir o mesmo sapatinho para ir à escola vai muito além de uma pequena história iraniana. É uma pequena história universal. O filme viaja tranqüilo por uma lição do que é a solidariedade, saltando os lugares comuns do cinema, correndo para o lado contrário do maniqueísmo.

Como em qualquer filme iraniano, os atores não são profissionais, mas a dupla de protagonistas é encantadora. Ali e Zahra conquistam pelos sorrisos e pelas lágrimas. Os dois estabelecem uma rara simbiose no cinema recente. Os irmãos são amigos, cúmplices, comparsas. Dividem segredos e dividem realidade. Formam uma liagção inexorável e indestrutível. Nada mais lindo. Como deve ser. Filhos do Paraíso é um filme lindo.

Filhos do Paraíso
Bacheha-Ye aseman, Irã, 1997
Direção e Roteiro: Majid Majidi
Elenco: Amir Farrokh Hashemian, Bahare Seddiqi, Mohammad Amir Naji, Nafise Jafar-Mohammadi, Fereshte Sarabandi, Kamal Mirkarimi, Behzad Rafi, Dariush Mokhtari, Mohammad-Hasan Hosseinian, Masume Dair. Produção: Mohammad Esfandiari e Amir Esfandiari. Fotografia: Parviz Malekzaade. Edição: Hassan Hassandoost.

O ENTARDECER DE UMA ESTRELA



A trajetória de Aurora Greenway no cinema norte-americano é antagônica a de Michael Corleone. Enquanto o poderoso chefão criou o estereótipo do padrinho italiano, o grande pai, e ganhou um status mitológico na cinematografia mundial, Aurora leva para as telas a mãe comum e é facilmente esquecida pelo cinéfilo mais atento. Em Laços de Ternura (83), Aurora estreou no cinema. Abriu as portas de sua casa, mostrou sua família e perdeu uma filha. O filme é um clássico do melodrama norte-americano: fácil, digerível, repleto de clichês e muito eficiente. Não há como negar que fez história. Shirley MacLaine equilibrou perfeitamente o humor rasgado e o drama profundo. Quando sua personagem volta às telas em O Entardecer de uma Estrela é que dá para se perceber a importância de Aurora. Ela é a matriarca-mor, a mãe suprema, a que assume os problemas dos outros para si. Seu maior trunfo é ser extremamente falível. Quando Aurora ressucita para as telas é que se percebe uma grande atriz e um grande desenho de personagem. Pena que é num filme que não signifique muito.

O Entardecer de uma Estrela
The Evening Star, EUA, 1996
Direção: Robert Harling
Elenco: Shirley MacLaine, Juliette Lewis, Miranda Richardson, Bill Paxton, Jack Nicholson, Ben Johnson, Scott Wolf, George Newbern, Marion Ross, Mackenzie Astin, Donald Moffat, Jennifer Grant, China Kantner, Don Burgess.
Roteiro: Robert Harling, baseado na novela de Larry McMurtry. Produção: David Kirkpatrick, Polly Platt e Keith Samples. Fotografia: Don Burgess. Direção de Arte: Bruno Rubeo. Música: William Ross. Edição: David Moritz e Priscilla Nedd-Friendly. Figurinos: Renee Ehrlich Kalfus.

6 de jul. de 2003

PROCURANDO NEMO



Quem acha que desenho animado é coisa de criança pode parar de ler aqui. Não é preciso ter menos de 12 anos para se deliciar com uma animação criativa. E não são os filmes que mudaram o conceito do gênero, como Shrek e South Park. O assunto aqui é o estúdio Pixar, que criou o que se pode chamar de clássico contemporâneo no mundo da animação, mantendo o encanto dos desenhos da Disney e conversando com a tecnologia. Fez os dois Toy Story, Vida de Inseto e Monstros S.A.. Na sexta-feira, o Brasil mergulhou em Procurando Nemo.

O longa conta a história do peixinho que se perde em mar aberto e é procurado pelo pai. A jornada de milhares de léguas submarinas é uma aventura sem precedentes, com coadjuvantes do porte de uma peixinha desmemoriada, uma tartaruga chapada e três tubarões que montaram um grupo para tentar se livrar do vício de comer carne de peixe. Procurando Nemo se equilibra com perfeição entre aventura, comédia e drama. É um longa com perfil clássico, mas feito para o público de hoje. Sem ser maniqueísta, discursa sobre a liberdade e sobre nossos pequenos e imensos desafios pessoais. A seqüência inicial é de uma competência dramática impressionante.

A delicadeza da história às vezes é escondida pela espetacular concepção visual dada ao longa. O universo do fundo do mar e suas possibilidades de cores ganham a tela numa mistura explosiva de luz e de forma. Tudo é construído com tanta perfeição que dá para acreditar que realmente existe material filmado na tela. A Pixar é genial porque ela constrói universos. Fazer o espectador acreditar no que vê na tela é a função primordial de um cineasta. Para embalar pelo encanto, pela sutileza, pela história, é preciso talento. E para perceber que Procurando Nemo foi feito por gente com talento, pode-se ter qualquer idade, mas é necessário saber como é sério ser criança.

Procurando Nemo
Finding Nemo, EUA, 2003
Direção: Andrew Stanton e Lee Unkrich
Elenco: Albert Brooks, Ellen DeGeneres, Alexander Gould, Willem Dafoe, Brad Garrett, Allison Janney, Austin Pendleton, Stephen Root, Vicki Lewis, Joe Ranft, Geoffrey Rush, Andrew Stanton, Elizabeth Perkins, Nicholas Bird, Bob Peterson, Barry Humphries, Eric Bana, Bill Hunter, Bruce Spence.
Roteiro: Andrew Stanton, Bob Peterson e David Reynolds. Produção: Graham Walters. Fotografia: Sharon Calahan e Jeremy Lasky. Direção de Arte: Ralph Eggleston. Edição: David Ian Salter. Música: Thomas Newman.

DOMINGO SANGRENTO



O cinema bebe da fonte da história desde seus primeiros dias, mas como é uma expressão artística se permite interpretações próprias sobre fatos que saíram dos livros ou dos jornais. Certas vezes, isso dá certo. Mas não são raras as polêmicas em torno de possíveis distorções históricas. Oliver Stone, por exemplo, adora uma tese. Adora dizer "foi assim" e acabou. Pode perguntar o que quiser sobre qualquer assunto para o senhor Stone que ele já terá pronta sua própria teoria, cheia de conspirações, sobre o tema. É por isso que nem sempre se pode confiar no que se vê na tela.

Domingo Sangrento, o filme, é baseado num fato real: o famoso domingo na década de 70 quando os militares ingleses mataram 13 pessoas e deixaram outros 14 feridos numa manifestação pela independência da Irlanda do Norte. Mas o filme de Peter Greengrass não usa os mesmos artifícios conspiratórios de Oliver Stone. O cineasta e roteirista resolve seu roteiro escrevendo uma reportagem sobre o episódio. A questão aqui não é imparcialidade ou não - até porque Greengrass é claramente favorável à versão dos irlandeses, que realmente parece ser a certa. O que está em jogo é como contar uma história real e não soar banal e panfletário.

O filme adota um tom descritivo, quase documental, desde o início, mostrando como o parlamentar Ivan Cooper, vivido por um competentíssimo James Nesbitt, mobilizou uma cidade para uma marcha que deveria ser pacífica. Paralelo a isso, o filme mostra a articulação dos militares ingleses e o que aconteceu na casa de um dos militantes. A montagem, assim como a fotografia realista (câmera no ombro o tempo inteiro), não são novidades. Todo mundo já fez isso. Mas poucos com esse intento. O de voltar no tempo e mostrar o que aconteceu. Nisso, o filme de Greengrass é perfeito, como poucas reportagens de TV em tempos de guerra conseguem ser.

A interpretação de James Nesbitt merece atenção. A indignação no rosto do ator faz pensar em como o ódio é tão presente na nossa cultura. Em como a mínima provocação vira motivo para matar. Vira justificativa. Tudo está mais fácil hoje em dia. Inclusive perder o controle. A cólera surge do nada e se apossa das pessoas que descarregam o que quer que seja em forma de balas de metralhadora no peito de alguém. O filme de Peter Greengrass mostra muito bem que o homem pode ser uma merda.

Domingo Sangrento
Bloody Sunday, Grã-Bretanha/Irlanda, 2002
Direção: Paul Greengrass
Elenco: James Nesbitt, Allan Gildea, Gerard Crossan, Mary Moulds, Carmel McCallion, Tim Piggott-Smith, Nicholas Farrell, Christopher Villiers, Declan Duddy, Edel Frazer, Joanne Linsay.
Roteiro: Paul Greengrass. Produção: Arthur Lappin, Mark Redhead. Fotografia: Ivan Strasburg. Direção de Arte: John Paul Kelly. Edição: Clare Douglas. Música: Dominic Muldoon. Figurinos: Dinah Collin.

4 de jul. de 2003

ARCA RUSSA



Primeiro: não existe nada parecido com Arca Russa na história do cinema. Apenas isso já seria mérito suficiente para o filme, mas, mais que isso, Aleksandr Sokúrov cria uma obra importante, um desafio estético e conceitual ao marasmo criativo que se apossou não apenas do cinema norte-americano, mas dos filmes feitos no mundo inteiro. Um narrador em off que é o olho da câmera e que nunca vai ser visto pelo espectador. Um co-narrador que lembra uma mistura de Nosferatu com lorde europeu. Uma câmera que percorre um dos mais importantes museus do mundo, o Hermitage, na Rússia, numa viagem sem nenhum corte, possibilidade da filmagem digital. Uma aula de história e de cinema.

Arca Russa não é para todos. Por sinal, é para poucos. É um filme difícil, com fortíssimo, quase absoluto, tom documental, narrado de maneira lenta, lírica e até lúdica. Apesar do movimento se cristalizar na tela com o percurso do filme pelos corredores do museu, o filme não é ágil, o que deixou muita gente com sono. Perfeitamente entendível. A narrativa de Sokúrov é completamente alheia ao cinema universal. Gosta de passear sem pressa pelas imagens. Ainda mais quando o filme é um filme de imagens.

Sokúrov, aqui, passeia pelo museu e pela história. Mostra como a Rússia nunca conseguiu fazer parte de uma Europa imperial. Mostra como o país tentou construir sua história abduzindo a história e a arte de outros países. Viaja pela nostalgia do que nunca conseguiu ser, mostrando as obras que ocupam as paredes do Hermitage e mostrando os antigos personagens da família real russa. A idéia do conde que acompanha o narrador é fantástica. O ator é maravilhoso. Seu flerte com uma das mulheres que encontra pelo caminho é uma cena belíssima. O que se encontra pelos corredores do museu já enche os olhos para uma vida inteira. É arte pura. Falar da competência da direção de arte seria redundância. E Arca Russa é arte pura. É perfeição. Declaração de amor à imagem. Encontrar Catarina da Rússia em um corredor ou acompanhar um baile num dos majestosos salões do prédio do antigo castelo que agora dá lugar ao museu é uma experiência sem igual.

Arca Russa
Russkij Kovcheg, Rússia/Alemanha, 2002
Direção: Aleksandr Sokúrov.
Elenco: Sergei Dontsov, Mariya Kuznetsova, Leonid Mozgovoy, David Giorgobiani, Aleksandr Chaban, Maksim Sergeyev.
Roteiro: Boris Khaimsky, Anatoli Nikiforov, Svetlana Proskurina e Aleksandr Sokúrov. Produção: Andrei Deryabin, Jens Meuer e Karsten Stöter. Fotografia: Tilman Büttner. Direção de Arte: Natalya Kochergina e Yelena Zhukova. Edição: Stefan Ciupek, Sergei Ivanov e Betina Kuntzsch. Música: Sergei Yevtushenko. Figurinos: Maria Grishanova, Lidiya Kryukova e Tamara Seferyan.

3 de jul. de 2003

BARAN



A cinematografia iraniana talvez tenha sido a mais uníssona da última década. O cinema, quem diria, virou moda no país de Khomeini. A temática é cara a quase todos os cineastas que se destacam, do consagrado Abbas Kiarostami, que ficou na coluna do meio com seu clássico Através das Oliveiras (94) a Jafar Panahi, que triunfou com seu difícil e bonitinho O Balão Branco (95). O foco é o dia-a-dia, a vida das pessoas simples do Irã. Tudo amarrado por uma narrativa que se aproxima do neo-realismo italiano pela estética nua e que muitas vezes se aproxima da metalinguagem.

Apesar de boas surpresas, os cineastas iranianos pecam pelo marasmo criativo. Os filmes se parecem muito uns com os outros, quando não soam experimentalismo puro, estética do choque. Quem consegue fugir disso é Mohsen Makhmalbaf, que não passou seu talento para a filha Samira. Em O Silêncio (98), Um Instante de Inocência (96) e, sobretudo, Gabbeh (96), Mohsen une poesia e forma, criando obras admiráveis, que terminaram não dando sucessão a outros bons filmes na obra do cineasta. O realizador que mais poderia ser tido com sucessor de Makhmalbaf é Majid Majidi.

Majidi é um cineasta iraniano clássico. Conta histórias pequenas, de gente simples, explora o dia-a-dia. Mas sabe fazer filmes delicados. Seu melhor filme se chama Filhos do Paraíso (98), a história do menino que tem seus sapatos roubados e passa a dividir um único par com a irmãzinha. Fez um filme doce, triste e sem excessos. Baran, seu último trabalho, segue a linha da história bonitinha. Conta a de um pedreiro que se apaixona por um novato que aparece na construção e que guarda um segredo. Passo a passo, Majidi apresenta seus personagens. Sem pressa, com paciência. Envolve o espectador com a pequena história, mostra as dificuldades de seus personagens. Mas nunca passa do bonitinho. A fórmula de Baran é a mesma.

Baran
Baran, Irã, 2001
Direção: Majid Majidi
Elenco: Hossein Abedini, Zahra Bahrami, Mohammad Amir Naji, Hossein Mahjoub, Abbas Rahimi, Gholam Ali Bakhshi, Jafar Tawakoli.
Roteiro: Majid Majidi. Produção: Majid Majidi e Fouad Nahas. Fotografia: Mohammad Davudi. Direção de Arte: Behzadi Kazzazi. Edição: Hassan Hassandoost. Música: Ahmad Pezhman. Figurinos: Behzad Kazzazi e Malek Jahan Khazai.


 
online