[f i l m e s d o c h i c o]

30 de set. de 2003

BEIJE QUEM VOCÊ QUISER



Uma das maiores vantagens deste filme é seu elenco. O mérito deve ser dado ao diretor Michel Blanc, cujo prestígio conseguiu agregar, além da mulher Carole Bouquet, nomes como o da maravilhosa e veterana Charlotte Rampling e o da nova e festejada Karin Viard. Sobrou justamente para Blanc o papel mais chatinho do longa, o de um marido quase esquizofrênico que não consegue conter seus ciúmes. Construído nos moldes de um Short Cuts, onde as histórias particulares de cinco casais se entrecortam, o filme embarca nas paranóias pessoais de cada personagem: solidão, insegurança, culpa, medo, compulsão. Na maior parte do tempo, Blanc é feliz ao equilibrar seu roteiro entre a comédia farta e o drama inteligente, sem pretensões intelectuais, o que já é um ponto forte em se tratando de um filme francês. Karin Viard dá seu show particular, mas o personagem de seu marido (o melhor do filme), vivido por um discreto e perfeito Denis Podalydès, merecia um desfecho tão elaborado quanto sua apresentação. Clotilde Courau é um misto de ingenuidade e disfarçatez. Charlotte Rampling ganha talve o o beijo mais doce de sua carreira numa belíssima e curta cena. Ruim foi ter que fingir acreditar no texto fraco de Jacques Dutronc e sua relação Traídos pelo Desejo, só porque Michel Blanc queria garantir a cota mínima. A reunião final parece forçada - coisa de quem teve preguiça de pensar um pouco mais. Absolutamente fake. Mas o saldo é positivo.

P.S.: este filme integra uma mostra de cinema francês que passa por Salvador e percorre o país.

Beije Quem Você Quiser
Embrassez Qui Vous Voudrez, Brasil, 2003
Direção e Roteiro: Michel Blanc, com base no livro Summer Things, de Joseph Connolly.
Elenco:Charlotte Rampling, Jacques Dutronc, Carole Bouquet, Michel Blanc, Karin Viard, Denis Podalydès, Clotilde Courau, Vincent Elbaz, Lou Doillon, Sami Bouajila, Gaspard Ulliel, Mélanie Laurent, Mathieu Boujenah, Mickaël Dolmen, Barbara Kelsch.
Produção: Yves Marmion. Fotografia: Sean Bobbitt. Edição: Maryline Monthieux. Direção e Arte: Benoît Barouh. Figurinos: Olivier Bériot. Música: Mark Russell.

AMÉM



O microfone da denúncia nunca pára e, depois de dar a volta no mundo, foi parar mais uma vez nas mãos do grego Konstantin Cota-Gavras. O maior ativista político do cinema desde o final dos anos 60 mirou sua metralhadora desta vez para a Igreja Católica, mas acertou no alvo ao fazer um filme contra o silêncio e não contra a instituição. O que poderia se transformar num tratado sobre a corrupção da igreja - e consequentemente ganhar ares meramente birrentos ou rançosos - virou um filme sobre as múltiplas razões que nos fazem abdicar do poder da palavra. A história de Amém é a história do silêncio de Kurt Gerstein, oficial da SS, que desenvolveu um produto para desinfetar depósitos, mas que descobriu que seu invento ganhou outro propósito para outro tipo de higiene, a higiene racial. O silêncio é a música de fundo da tentativa de Gerstein em revelar o massacre que acontecia através da Igreja Católica. Massacre com o qual não concordava, mas do qual não conseguia se desligar totalmente.

A contradição do personagem principal revela uma das mais importantes características do cinema de Costa-Gavras, a de criar homens de verdade, divididos, falhos, imperfeitos. A interpretação de Ulrich Tukur (que fez Solaris, de Steven Soderbergh) é belíssima, reforçando os defeitos do protagonista, que, apesar de tentar mudar uma situação muito maior que ele, se rende às dificuldades e ao medo que castram sua dignidade. Costa-Gavras elabora um jogo onde a cada momento Gerstein assume uma faceta diferente: a de oficial conivente ou a de sonhador ingênuo. O parceiro perfeito apareceu na figura do padre vivido pelo cada vez mais completo Matthieu Kassovitz (diretor de O Ódio e ator de Um Herói Muito Discreto), absolutamente encantandor como um homem puro que tenta mostrar para os outros que tudo está errado. Sua revolta com o silêncio é a de todos nós, que somos menos puros que ele.

Humanizando seu filme nas figuras de sua dupla de protagonista, Costa-Gavras foge do discurso e resolve contar uma história. A maior vantagem de Amém é justamente ser mais que um filme político, ser um filme sobre a recusa, o esquivmento, as prioridades, os silêncios de cada dia que nos livram de problemas maiores do que os que já temos. Não há a intenção de mostrar a corrupção do clero, os bastidores do Vaticano, muito menos a idéia de construir heróis, mas de descontrui-los. O maior prazer proporcionado pelo filme é ver como uma produção gigantesca pode ser dirigida com elegância sem se render aos dois lados do clichê. Você tem o direito de ficar calado porque tudo o que você disse pode ser usado contra você.

P.S.: este filme integra uma mostra de cinema francês que passa por Salvador e percorre o país.

Amém
Amen., França/Alemanha/Romênia/EUA, 2002
Direção: Konstantin Costa-Gavras.
Elenco: Ulrich Tukur, Mathieu Kassovitz, Ulrich Mühe, Michel Duchaussoy, Ion Caramitru, Marcel Iures, Friedrich von Thun, Antje Schmidt, Hanns Zischler, Sebastian Koch, Erich Hallhuber, Burkhard Heyl, Angus MacInnes, Bernd Fischerauer, Pierre Franckh, Richard Durden, Monika Bleibtreu, Justus von Dohnanyi, Günther Maria Halmer, August Zirner, Horatiu Malaele, Ovidiu Cuncea.
Roteiro: Costa-Gavras e Jean-Claude Grumberg, com base na peça Stellvertreter, de Rolf Hochhuth.. Produção: Claude Berri, Andrei Boncea e Michèle Ray-Gavras. Fotografia: Patrick Blossier. Edição: Yannick Kergoat. Direção de Arte: Ari Hantke. Figurinos: Edith Vesperini. Música: Armand Amar.

IDENTIDADE



Se você não quiser saber o segredo deste filme, pare de ler a partir deste ponto: o assassino é o Coronel Mostarda, com uma faca, na sala de jogos. Hehehe. A abertura do texto era só para assustar e brincar com os críticos de cinema que acham que precisam contar o final do longa para escrever sobre um filme de suspense. O protagonista destas linhas é James Mangold, um daqueles cineastas que fazem de tudo. Dramas cabeça e policiais interioranos fazem parte da sua filmografia não tão extensa. O diretor agora se aventura pelo suspense, mais especificamente naquele subgênero onde se precisa descobrir um assassino. Quem nunca jogou detetive que atire a primeira pedra sobre o tabuleiro.

Identidade logo em suas primeiras cenas, revela-se uma surpresa: bem escrito e editado, apresenta bem os dez personagens que vão sendo eliminados pouco a pouco num hotel de beira de estrada. Reaproveitando os clichês do gênero, o filme se estrutura inteligentemente, desenvolvendo uma trama paralela aos crimes do hotel, que se mostra aos poucos fundamental para o desenrolar da trama. Os personagens fogem dos estereótipos fáceis e o texto surpreende. John Cusack, mais uma vez, consegue um bom papel, mas o destaque do elenco mesmo é Amanda Peet, como uma prostituta sonhadora. A resolução encontrada pelo roteirista é boa, mas um golpe final coloca tudo - ou quase tudo - a perder. A criatividade de Identidade parece não ter sido satisfatória para os produtores, que quiseram um final mais ativo para provocar impacto no espectador. O excesso fica evidente.

Identidade
Identity, EUA, 2003
Direção: James Mangold.
Elenco: John Cusack, Ray Liotta, Amanda Peet, John Hawkes, Alfred Molina, Clea DuVall, John C. McGinley, William Lee Scott, Jake Busey, Pruitt Taylor Vince, Rebecca De Mornay, Carmen Argenziano, Marshall Bell, Leila Kenzle, Matt Letscher, Bret Loehr, Holmes Osborne, Frederick Coffin, Joe Hart, Michael Hirsch, Terence Bernie Hines.
Roteiro: Michael Cooney. Produção: Cathy Konrad. Fotografia: Phedon Papamichael. Edição: David Brennerl. Direção de Arte: Mark Friedberg. Música: Alan Silvestri. Figurinos: Arianne Phillips.

NATHALIE X



A diretora Anne Fontaine é francesa e, como tal, tem por obrigação investigar a alma humana. Escolheu um modo interessante: uma psicóloga contrata uma prostituta para descobrir porque seu marido a trai. Nathalie X é um filme sobre sexo, mas há pouquíssimas cenas de sexo nele. Quase nenhuma. A imagem é dispensada em favor da palavra. Essa adulteração é a característica mais interessante do longa. O voyeurismo é elevado ao cubo, mas ninguém vê nada. A palavra é falada, contada, interpretada, mas mesmo assim se mantém sedutora. As histórias eróticas são narradas e não praticadas. E se tornam necessárias, fundamentais. Estabelece-se a dependência: a personagem de Fanny Ardant precisa da de Emmanuelle Béart, de suas explicações, de suas respostas, de suas histórias, de sua voz, de suas palavras, de sua beleza. Béart, vulgarnente lindíssima, domina cada cena. Domina tudo. A investigação de Anne Fontaine fala baixo, sussurra ao nosso ouvido, mas conta tudo o que precisamos saber.

P.S.: este filme integra uma mostra de cinema francês que passa por Salvador e percorre o país.

Nathalie X
Nathalie..., França, 2003
Direção: Anne Fontaine.
Elenco: Fanny Ardant, Emmanuelle Béart, Gérard Depardieu.
Roteiro: Philippe Blasband, Jacques Fieschi, Anne Fontaine e François-Olivier Rousseau. Produção: Alain Sarde. Fotografia: Jean-Marc Fabre. Edição: Emmanuelle Castro. Direção de Arte: Michel Barthélémy. Música: Michael Nyman. Figurinos: Pascaline Chavanne.

A LIGA EXTRAORDINÁRIA



A idéia de Alan Moore é genial. Allan Quattermain, Mina Harker, Dr. Jekyll, Mr. Hyde, entre outros... Personagens clássicos da literatura, cada qual com habilidades especiais, formam um grupo de super-heróis. Nos quadrinhos, funcionou muito bem. Rapidamente a série ganhou status cult e fãs ardorosos. Entre eles, o cineasta Stephen Norrington, que tem um mérito na vida: foi o responsável pelo ressurgimento dos quadrinhos no cinema. Seu Blade (98), inspirado num vampiro do segundo escalão da Marvel Comics, abriu caminhos para mutantes, aracnídeos e enormes criaturas verdes. Apesar de ter seus admiradores, o filme de Norrington evidencia os defeitos de seu diretor, amante de uma estética kitsch e mestre em se virar para fazer o que não pode com o dinheiro que não tem.

Este é apenas um dos problemas de A Liga Extraordinária. O filme precisava de mais dinheiro. Os efeitos especiais, sobretudo os do monstro Mr. Hyde, são tão artificiais que se aproximam do visual dos inimigos dos Power Rangers. O filme sofre pelo excesso. O desenho de produção é exagerado, fake e o pior, sofre de uma extrema falta de bom gosto. A concepção da maquiagem do homem invisível é outro ponto falho, feio mesmo. E isso incomoda muito num filme que deveria conquistar também pela estética.

Mas esse não é o único senão do filme. Stephen Norrington precisava agradar a todos e, para isso, decidiu deturpar a idéia original de Alan Moore, craidor de, entre outros, personagens fabulosos como os Watchmen e o Monstro do Pântano. Soma ao grupo original novos personagens clássicos, que garantem outras cotas - étnicas e geográficas - para deixar todo mundo feliz. A mudança prejudica o andamento da trama porque os integrantes do grupo não têm tanto espaço para serem devidamente apresentados e explorados. E a história encolhe feio e é rabiscada, sem nenhum desenvolvimento decente. Quando tenta contar uma história, Norrington esbarra na limitação de sua capacidade criativa, que aposta no excesso, criando cenas de proporções avassaladoras sem justificativa, e naufraga num mar de pouca idéias realmente boas.

A inclusão do personagem mais clássico de Oscar Wilde, Dorian Gray, parecia uma excelente opção, mas o homem do retrato perdeu completamente sua natureza homoerótica, apesar do esforço de Stuart Townsend em parecer afetado. Sean Connery faz o mesmo papel de sempre e os demais pouco têm expressão. O único grande acerto do elenco é a ótima Peta Wilson, que encarna com uma fúria impressionante a vampira Mina Harker, obejto do desejo daquele conde da Transilvânia. Ela vale o filme, embora um fã de quadrinhos - ou um fã de um bom filme de aventura - vá sair decepcionado do cinema.

A Liga Extraordinária
The League of Extraordinary Gentlemen, EUA, 2003
Direção: Stephen Norrington.
Elenco: Sean Connery, Naseeruddin Shah, Peta Wilson, Tony Curran, Stuart Townsend, Shane West, Jason Flemyng, Richard Roxburgh, Max Ryan, Tom Goodman-Hill, David Hemmings, Terry O'Neill, Rudolf Pellar, Winter Ave Zoli.
Roteiro: James Dale Robinson, baseado na série de quadrinhos de Alan Moore e Kevin O'Neill. Produção: Trevor Albert e Don Murphy. Fotografia: Dan Laustsen. Edição: Paul Rubell. Direção de Arte: Carol Spier. Música: Trevor Jones. Figurinos: Jacqueline West.

29 de set. de 2003

A INGLESA E O DUQUE



Grace Elliott era quase uma cortesã, mas guardava grande dose de pureza em sua alma. Fazia de tudo para ajudar as pessoas, conhecendo-as ou não. E, durante a Revolução Francesa, não faltava gente precisando ser ajudada. A senhora Elliott tinha por hábito anotar os principais acontecimentos de seus dias, com um destacado espaço para suas (boas) ações. O nouvellevagueano Éric Rohmer escolheu como roteiro, para o que classifica como seu último filme - Rohmer tem 94 anos -, a história da senhora Elliott. E fez isso da maneira mais fiel possível às memórias de sua protagonista: tratando seus dias como páginas de um diário, romãntico, idealizado e, por conseqüência, artificial.

Elliott é retratada como uma mulher tão ingênua, que quase se esquece que ela vivia pulando de parceiro, trocando um duque pelo outro e mantendo uma relação amistosa com todos eles, afinal ela é uma boa pessoa. Se isso era pecado no século 18, Grace Elliott deve tê-lo pago ao acolher um fugitivo da revolução que mal conhecia debaixo de seus lençóis. Os fatos da vida da senhora Elliott podem até ter sido verdade, mas parecem tão construídos, fabricados que fica difícil se emocionar com eles. Rohmer, com bastante propriedade, conduz seu longa com distanciamento, como se não quisesse se comprometer com plausibilidade. Para o texto e para as interpretações (pouco empolgadas e empolgantes, sobretudo a da insossa protagonista), isso não funciona. O espectador olha e, quando não tira um cochilo, não se interessa. Para a imagem, a história é outra.

O programado artificialismo abraça uma idéia fantástica: todos os cenários externos são pinturas. Os atores contracenam diante de imensos painéis, que viram ruas, praças, rios e paisagens campestres. Eles entram e saem dos cenários e interagem diretamente com as telas. O tom assumidamente fake tem um resultado fabuloso visualmente. Muitas e muitas cenas parecem pinturas vivas, criando um efeito impressionante e fascinante. Pena que uma imagem só valha mais que mil palavras. Aqui precisava-se de mais.

A Inglesa e o Duque
L'Anglaise et le Duc, França, 2001
Direção: Éric Rohmer.
Elenco: Lucy Russell, Jean-Claude Dreyfus, Alain Libolt, Charlotte Véry, Rosette, Léonard Cobiant, François Marthouret, Caroline Morin, Héléna Dubiel, Laurent Le Doyen, Georges Benoît, Serge Wolfsperger, Daniel Tarrare, Marie Rivière, Michel Demierre, Serge Renko, François-Marie Banier.
Roteiro: Éric Rohmer, com base nas memórias Journal of My Life During the French Revolution, de Grace Elliott. Produção: Françoise Etchegaray. Fotografia: Diane Baratier. Edição: Mary Stephen. Direção de Arte: Antoine Fontaine. Figurinos: Nathalie Chesnais e Pierre-Jean Larroque.

22 de set. de 2003

O HOMEM DO ANO



Vamos direto ao assunto: terminada a projeção de O Homem do Ano, parece que nada aconteceu na tela. A história do homem comum que vira matador, interpretado por um irregular Murilo Benício, some como poeira no vento imediatamente depois do início dos créditos do filme. A culpa talvez seja da história original de Patrícia Melo, que tenta estabelecer uma brasilidade no romance policial, algo que soa meio estranho e talvez artificial. Mas o texto de Patrícia tem seus méritos, menos pela escrita e mais pelas idéias. A transformação do personagem num ídolo em sua comunidade local é muito boa. Caso fosse um curta-metragem sobre este momento, seria um filme muito bom. Mas O Homem do Ano, assim como o romance que o inspirou, conta uma história grande. E o que atrapalha é o que vem a seguir. A criatividade das cenas iniciais parece desaguar num poço de falta de idéias realmente consistentes.

A culpa poderia ser da adaptação de Rubem Fonseca, que assina o roteiro do filme dirigido pelo filho. Mas Rubem é considerado o maior autor do romance policial, e fonte inspiradora máxima de Patrícia Melo em seus trabalhos. Eu, para ser bem sincero, nunca li um livro de Fonseca e nunca tive vontade. Os trechos que chegaram à minha vista foram suficientes. Suficientes para eu me desinteressar. O romance policial brasileiro parece rascunho dos filmes do gênero produzidos nos Estados Unidos nos anos 40 e que tiveram seu ápice no cinema noir. Tudo parece copiado e forçado. Os enxertos brasileiros nas histórias soam artificiais e programados para as críticas que viriam caso eles não existissem. Há uma coisa pouco brasileira na produção de filmes policiais. Desde que o Brasil retomou sua produção cinematográfica, há pouco menos de dez anos, as tentativas de realizar um filme do gênero realmente bom vinham reprisando frustrações até que Beto Brant surgiu com seus Matadores (97) e O Invasor (02). Rural ou urbano, o cinema de Brant é bom cinema e bom cinema policial.

O Homem do Ano peca pelo excesso. José Henrique Fonseca quer fazer um filme profundo, quer mergulhar na mente de seu protagonista, mas esbarra num roteiro que nunca concentra a ação, joga as cenas na tela e não envolve. Murilo Benício, que já deu exemplos de que é talentoso, começa o filme com um sotaque e um jeito de falar que tentam exacerbar a estranheza de seu personagem. Tentam mostrar o quanto ele tosco. Em seguida, perde essa característica e melhora sua interpretação, mas nunca chega a estar satisfatório. Natália Lage, pelo contrário, quando é uma coadjuvante, está perfeita em cena. Consegue a profundidade que falta ao filme e ao resto do elenco, mas a virada de sua personagem a deixa estereotipada e põe um texto muito ruim na sua boca. A edição do longa, acelerada, é bem executada, mas não funciona como linguagem porque as coisas não duram o tempo que deveriam durar. Quando menos você espera, O Homem do Ano acaba e você nem sente.

O Homem do Ano
O Homem do Ano, Brasil, 2003
Direção: José Henrique Fonseca.
Elenco: Murilo Benício, Natália Lage, Cláudia Abreu, Jorge Dória, André Gonçalves, Moska, Paulo César Pereio, Amir Haddad, Perfeito Fortuna, Lázaro Ramos, André Barros, José Wilker, Agildo Ribeiro, Mariana Ximenes, Carlo Mossy, Preta Gil, Vic Militello, Marilu Bueno, Wagner Moura, José Henrique Fonseca.
Roteiro: Rubem Fonseca, baseado no livro O Matador, de Patrícia Melo. Produção: José Henrique Fonseca, Leonardo Monteiro de Barros e Flávio R. Tambellini. Fotografia: Breno Silveira. Edição: Sérgio Mekler. Direção de Arte: Toni Vanzolini. Figurinos: Cláudia Kopke. Música: Dado Villa-Lobos.

21 de set. de 2003

SAMSARA



Nem todo mundo é Ang Lee. Antes de recriar super-heróis verdes nos Estados Unidos, o cineasta de Taiwan era dado a discutir temas que colocavam a família e as tradições de sua terra natal em seus filmes. A dedicação garantiu pelo menos uma obra-prima, Comer Beber Viver (94), além de outros belos filmes. Samsara, guardando as devidas proporções, também é um filme sobre família e tradições. Mas o diretor Pan Nalin segue por um caminho distante do de Ang Lee. Aposta numa tentativa frouxa de fazer poesia com imagens belíssimas e lentidão. Textos filosoficozinhos e pouca profundidade real. Samsara tenta seguir os moldes de um dito cinema oriental, mas falta movimento. Não o movimento de filme ocidental, mas motivação, interesse despertado no espectador. Pan Nalin faz de seu filme um exemplar de um cinema contemplativo, onde acontece pouca coisa.

Pode parecer falta de sensibilidade não enxergar justamente ela, a sensibilidade, neste filme. Mas Samsara, que narra os anos em que um monge abandona o monastério em troca de uma vida familiar, reproduz uma história chavão, cheia de lições e moralista em excesso. Se fosse feito nos Estados Unidos, seria um melodrama cheio de clichês, mas a aura de filme oriental o disfarça de discussão aprofundada e delicada sobre o homem, as prioridades e o amor. O filme até tenta escapar deste destino, mas ao apostar no protagonista (e no homem, em geral) como um produto de sua história e de seus arredores caminha até um final onde o que vale é o passado, a tradição, o antigo. Nem a bela fotografia, que é excessiva no uso de filtros e mais filtros, equilibra o filme de Pan Nalin. Nem todo mundo é Ang Lee.

Samsara
Samsara, França/Índia/Itália/Alemanha, 2001
Direção: Pan Nalin.
Elenco: Shawn Ku, Christy Chung, Neelesha BaVora, Lhakpa Tsering, Tenzin Tashi, Jamayang Jinpa, Sherab Sangey, Kelsang Tashi, Tsepak Tsangpo, Antoine du Merle.
Roteiro: Tim Baker e Pan Nalin, com base na história de Nalin. Produção: Karl Baumgartner e Christoph Friedel. Fotografia: Rali Raltschev. Edição: Isabel Meier. Direção de Arte: Petra Barchi. Figurinos: Natasha De Betak. Música: Cyril Morin.

18 de set. de 2003

SECRETÁRIA



Existe uma coisa no cinema norte-americano que incomoda tanto quanto os clichês e o formato pré-fabricado das produções dos grandes estúdios, direcionadas para a maior quantidade possível de espectadores e presas a regras que mutilam a inteligência e a criatividade. O famoso, debatido e cultuado cinema independente dos EUA, que nos deu gente do porte de David Lynch, Todd Solondz e Wes Anderson, ficou tão estático que se enraizou, criando regras que, se não reproduzem, crescem paralelas àquelas que motivaram seu surgimento. O cinema independente, que deveria ser desprendido, ágil e mutável, está engessado por uma necessidade, quase que corrosiva de sua própria natureza, de chamar atenção pelo choque. Seja ele estético ou de linguagem.

A estética do choque é viciosa e destrutiva. Os diretores independentes criam artifícios que, analisados com o mínimo de distanciamento, soam tão programados para gerar determinado tipo de reação que perdem o impacto e a graça. Nem sempre o bizarro é o inteligente.

Steven Shainberg caiu direitinho na armadilha do filme independente. Fez um filme que quer mostrar tanto que é esquisito, que aborrece pelo excesso. Shainberg, como já foi dito, se preocupa com a câmera, com a direção de arte, mas quase que abandona a simplicidade em se contar uma história. A que escolheu para adaptar parece tão artificial que causa estranhamento e distanciamento.

Dirige muito mal uma atriz que, nas entrelinhas, demonstra que pode ser grande um dia. Maggie Gyllenhaal desequilibra sua atuação com momentos de inteligência e clichês de caras e bocas de "olha como eu sou uma coitadinha". Jeremy Davies faz o maluquinho interiorano padrão dos filmes independentes. A surpresa mesmo aqui é James Spader, um dos atores símbolo da Brat Pack Generation (que nos deu Rob Lowe, Molly Ringwald e Andrew McCarthy, entre outros), que está sutil, cheio de tiques e finalmente virou homem, deixando para trás a imagem de vilãozinho de filmes adolescentes.

Os clichês são evitados em poucos momentos do filme, sobretudo em sua meia hora final, onde o diretor parece encontrar o timing correto da direção de atores, mas o desfecho e algumas soluções (como a incursão televisiva na história), surpreendem. Surpresa negativa porque o filme que passa o tempo inteiro negando a grande fórmula e se rendendo às pequenas, termina se curvando a chavões do cinemão, o que não dá para entender. No balanço, Secretária tem elementos interessantes completamente mal aproveitados.

Secretária
Secretary, EUA, 2002
Direção: Steven Shainberg.
Elenco: Maggie Gyllenhaal, James Spader, Jeremy Davies, Lesley Ann Warren, Stephen McHattie, Patrick Bauchau, Jessica Tuck, Oz Perkins, Amy Locane, Mary Joy, Michael Mantell, Lily Knight, Sabrina Grdevich, Lacey Kohl, Julene Renee, Lauren Cohn.
Roteiro: Erin Cressida Wilson, com base na históiria adptada por ela e por Steven Shainberg, baseados no conto de Mary Gaitskill. Produção: Steven Shainberg, Andrew Fierberg e Amy Hobby. Fotografia: Steven Fierberg. Edição: Pam Wise. Direção de Arte: Amy Danger. Figurinos: Marjorie Bowers. Música: Angelo Badalamenti.

15 de set. de 2003

AMAR É SOFRER



Teatro, quando vira cinema, nem sempre dá certo. George Seaton é um diretor clássico, daqueles que faziam filmes com classe, mas dentro de uma formalidade quase intocável, mesmo que o tema fosse mais provocador. Em Amar é Sofrer, Seaton adapta de próprio punho a peça de Clifford Odets sobre o artista decadente e alcoólatra que ganha a chance de retomar sua carreira. Bing Crosby recebe um papel que parece uma versão dramática das comédias que estrelava. Um patetão gente boa, mas que tem problemas de caráter. A princípio, deveria ser o foco do filme, mas os holofotes voltam-se para outra pessoa do elenco. Seaton aposta numa poderosa interpretação de Grace Kelly, que faz a esposa do bêbado. A então futura princesa nunca foi uma excelente atriz, mas o encanto de sua figura seduz qualquer platéia. E aqui, ela consegue um vigor impressionante em sua interpretação. A maquiagem tenta esconder sua beleza para mostrar seu talento. Não consegue esconder, mas consegue mostrar. Grace, que ganhou o Oscar por sua interpretação - num ano onde era impossível imaginar que o pleadão dourado fosse para nas mãos de outra que não Judy Garland, por Nasce uma Estrela, é a mulher forte. Sustenta o filme nas costas. Seu rosto sério, por mais que esbarre na caricatura algumas vezes, tira qualquer dúvida de seu talento. Ela e a espetacular direção de fotografia do então estreante John F. Warren, que vai ao teatro para fazer cinema e explode em jatos de luz nos rotos dos personagens, são as melhores coisas do filme, que, como todos os filmes de George Seaton, é clássico e classudo.

Amar é Sofrer
The Country Girl, EUA, 1954
Direção: George Seaton.
Elenco: Bing Crosby, Grace Kelly, William Holden, Anthony Ross, Gene Reynolds, Jacqueline Fontaine, Eddie Ryder, Robert Kent, John W. Reynolds, Bob Alden, George Chakiris, Les Clark, Hal K. Dawson.
Roteiro: George Seaton, baseado na peça de Clifford Odets. Produção: William Perlberg e George Seaton. Fotografia: John F. Warren. Edição: Ellsworth Hoagland. Direção de Arte: Roland Anderson e Hal Pereira. Figurinos: Edith Head. Música: Victor Young, com canções de Harold Arlen.

DIRIGINDO NO ESCURO



Não. Não venha dizer que este é um filme descompromissado, sem pretensões, uma obra-menor de um grande autor. Também não diga que todo mundo precisa se divertir, que todo gênio tem direito a descanso, que ninguém precisa elocubrar o tempo inteiro. Não diga mesmo é que todos os elementos o cinema do diretor estão ali. Porque ali mesmo não tem quase nada. Woody Allen ficou velho. É essa a conclusão que se tem depois de uma sessão de Dirigindo no Escuro, o trabalho mais recente do cineasta a chegar ao Brasil. O filme parece demonstrar que Allen está cansado de ser o grande autor norte-americano. Seu cinema perdeu a inteligência e embarcou no riso fácil, nas gags gastas, no popularesco, no estereótipo.

Sob a máscara de criticar Hollywood e a indústria de cinema, Allen faz um filme preconceituoso, que coloca na boca de um patético George Hamilton a frase de que ele é um executivo de cinema que faz parte de um grupo de apoio para executivos que não tem jatinhos. Hahaha. Que engraçado! O ator nem sabe que está sendo feito de palhaço. E até para ser palhaço é preciso de talento. O preconceito aparece de novo na caracterização do metaleiro filho do personagem de Allen, de cabelo punk verde, que come ratos no palco. Mas o pior mesmo é constatar como este filme é preguiçoso, como Allen não se preocupou em dar consistência a sua comédia. Parece até que o filme foi dirigido por um cego.

Minha amiga Flávia é que está certa: "eu fiquei esperando a hora do Eddie Murphy entrar em cena". E o pior é que ele não aparece.

Dirigindo no Escuro
Hollywood Ending, EUA, 2002
Direção e Roteiro: Woody Allen.
Elenco: Woody Allen, Tea Leoni, Treat Williams, George Hamilton, Mark Rydell, Debra Messing, Peter Gererty, Aaron Stanford, Greg Mottola, Mark Webber, Barney Cheng, Isaac Mizrahi, Lu Yu, Douglas McGrath.
Produção: Letty Aronson. Fotografia: Wedigo von Schultzendorff. Edição: Alisa Lepselter. Direção de Arte: Santo Loquasto. Figurinos: Melissa Toth.

8 de set. de 2003

AGORA OU NUNCA



Já faz tempo que Phil e Penny são casados. Eles têm dois filhos adolescentes, Rachel e Rory. Os quatro moram juntos num apartamento apertado num subúrbio pobre de Londres. Mas Phil se sente sozinho. E ele não está nesta. Penny também é uma mulher solitária. E Rachel, na sua timidez castradora, e Rory, na sua revolta explosiva, também não conseguem se relacionar. Os quatro se amam, como devem fazer as famílias. E se odeiam, como não deveriam fazer as famílias. Mike Leigh bebe da mesma fonte do clássico Segredos e Mentiras (96) para informar que as pessoas podem ser tristes como o céu acinzentado da Inglaterra. Agora ou Nunca (02) não teve o mesmo impacto que seu antecessor provavelmente porque ninguém gosta muito de ver pessoas tristes. E aqui não existe felicidade. A pobreza financeira empobreceu também a capacidade de amar dos personagens deste filme. Todos estão exaustos. Exaustos de uma vida que não os move, que não os faz felizes. Durante anos e anos a insatisfação que invadiu a casa desta família e cresceu dentro do peito de cada um deles. Sufoca cada um deles, que não sabem como reagir. A maioria guarda tudo para si e explode sem perceber. Descontam um no outro. Culpam um ao outro pela apatia e pelo sufoco que virou sua vida. A solidão cria raízes, cresce, sufoca o peito e explode. Mike Leigh vai além de Segredos e Mentiras e não poupa ninguém. Nem na tela e nem fora dela. Tem gente que nunca vai ser feliz, por mais que pequenos momentos de lucidez debaixo de uma camada de cimento possam aventar tal possibilidade. E quando você acha que um beijo pode mudar tudo, você percebe que as pessoas já estão acostumadas a falhar. E como falhar passa a ser muito cômodo depois que as pessoas se acostumam às falhas, a vida pode ser conduzida por uma tristeza tão avassaladora que faz você congelar na poltrona e pensar o que realmente vale a pena.

Agora ou Nunca
All or Nothing, Grã-Bretanha, 2002
Direção: Mike Leigh.
Elenco: Timothy Spall, Lesley Manville, Alison Garland, James Corden, Ruth Sheen, Marion Bailey, Paul Jesson, Sam Kelly, Kathryn Hunter, Sally Hawkins, Helen Coker, Daniel Mays, Ben Crompton, Robert Wilfort, Gary McDonald, Diveen Henry, Timothy Bateson, Edna Doré, Georgia Fitch, Tracy O'Flaherty, Jean Ainslie.
Roteiro: Mike Leigh. Produção: Simon Channing-Williams. Fotografia: Dick Pope. Edição: Lesley Walker. Direção de Arte: Eve Stewart. Música: Andrew Dickson. Figurinos: Jacqueline Durran.

2 de set. de 2003

EMBRIAGADO DE AMOR



O momento mais bonito de Embriagado de Amor é quando uma sucessão de cores explode na tela. Isso acontece umas três vezes no filme. Talvez mais. Os pigmentos borram a sala de cinema como se estivessem pintando as vidas de quem está sentado ali. Mas as cores bonitas do novo filme de Paul Thomas Anderson não ajudam seu protagonista. A vida de Barry Egan não é boa. Sua incapacidade de se relacionar com os outros, sobretudo com possíveis parceiras, é quase que completa. Egan vive uma realidade diferente. Projeta em si mesmo o que quer do mundo, o que pretende da vida. E ele pretendo pouco. Compra quilos de pudim para ganhar milhas de viagem que nunca vai usar e treme quando tem que dar uma resposta que seja. Egan é diferente? Não, por mais que tente se estabelecer um componente de normalidade em seu comportamento, ele tem sérios problemas psiquiátricos. Egan não representa o homem comum que não consegue se relacionar. Ele é um homem com problemas que não consegue se relacionar. Não reflete um comportamento no qual as pessoas vão se identificar porque suas reações para com o mundo não são as minhas, as suas ou as do cara ao lado. Sua história é uma só. É única.

Embriagado de Amor não tem amor. Talvez somente o amor fraternal que a irmã de Barry Egan tem por ele e que a faz tentar encontrar uma companheira para o protagonista. Talvez também exista amor na personagem de Emily Watson, como sempre muito bem, que surge e se interessa de verdade por uma pessoa que não interessa ninguém. Mas Barry Egan, por mais que possa se transformar num homem dócil, puro, sensível e inocente, não demonstra amor. Ele só segue o fluxo. Talvez não consiga se apaixonar, não consiga se envolver. Talvez sua natureza diferente o impeça de conseguir um relacionamento normal. Se bem que ninguém está aqui para definir o que é normal e o que não é. Isso pouca importa. O que importa é para o protagonista é muito mais importante resolver a confusão que criou por causa de uma ligação para o tele-sexo do que buscar uma alma gêmea realmente. E, no meio de dessa confusão, ele conhece uma moça que se interessa por ele. Aí, ele deixa fluir. Nada premeditado nem nada que demonstre ser intenso.

Isso não é ruim. Isso não é realmente necessário. Isso só é diferente. Paul Thomas Anderson muda tudo para contar o que se pretende como uma história de amor diferente. E Anderson, para variar, faz isso com competência. Competência em criar uma cena devastadora como quando a personagem de Emily Watson é apresentada a Barry Egan. Ou como quando Egan pede ajuda ao cunhado dentista e desaba num choro instantâneo por nada específico. Ou por tudo. Porque tudo na vida dele está errado. Ou ainda quando Egan tem súbitos ataques de fúria destruindo vidros e banheiros simplesmente porque não sabe mudar. Barry Egan quer ajuda e não amor. Ele quer sair daquilo tudo. E tudo o que o ajudar nesse intento será bem-vindo. Pode parecer cruel, mas é assim que Embriagado de Amor se apresenta para mim. Como um grito de socorro abafado, disfarçado e original. Um grito que precisaria de um ator magnífico para se sustentar, para ganhar nuances, para existir com força, da forma que deve ser. E consegue. Adam Sandler é mágico. E essa é a maior virtude e a maior surpresa do filme.

Embriagado de Amor
Punch-Drunk Love, EUA, 2002
Direção: Paul Thomas Anderson.
Elenco: Adam Sandler, Emily Watson, Philip Seymour Hoffman, Luis Guzmán, Jason Andrews, Don McManus, David Schrempf, Seann Conway, Rico Bueno, Hazel Mailloux, Karen Kilgariff, Julie Hermelin, Salvador Curiel, Jorge Barahona, Ernesto Quintero, Julius Steuer, Mary Lynn Rajskub, Lisa Spector, Nicole Gelbard, Mia Weinberg, Karen Hermelin, Larry Ring, Kerry Gelbard, Robert Smigel, Ashley Clark.
Roteiro: Paul Thomas Anderson. Produção: Paul Thomas Anderson, Daniel Lupi e Joanne Sellar. Fotografia: Robert Elswit. Edição: Leslie Jones. Direção de Arte: William Arnold. Música: Jon Brion. Figurinos: Mark Bridges.

1 de set. de 2003

LISBELA E O PRISIONEIRO



Já faz um tempo que o nordestino finalmente ganhou espaço na TV. Ele é um ser geralmente divertido, com sotaque engraçado e que se equilibra entre a esperteza e inocência. Às vezes ganha interpretações encantadoras, às vezes abraça a caricatura, mas de uma maneira geral não passa de um rascunho da realidade. O modelo do nordestino idealizado pela TV chegou ao cinema com mais força na década de 90 e se cristaliza em Lisbela e o Prisioneiro, primeiro material que Guel Arraes dirige exclusivamente para a tela grande. Arraes, que ao lado de Jorge Furtado criou uma linguagem própria dentro da televisão brasileira, é um homem de grande capacidade para envolver o espectador. Seus truques narrativos, sua direção de elenco costumam criar histórias envolventes e personagens deliciosos. O pernambucano, radicado há muito tempo na capital da TV no Brasil, o Rio de Janeiro, no entanto, parece ter deixado para trás suas raízes nordestinas. Aqui tudo o que aparece na tela é o que já se viu antes em novelas, minisséries e especiais de TV.

Qual o problema de tudo isso? A princípio, nenhum. Se Guel Arraes tivesse mantido a originalidade do seu modo de contar uma história, aparentemente nada incomodaria. Mas a solução que o diretor (e seus dois co-roteiristas, o parceiro Furtado e o ator Pedro Cardoso) encontrou, de intercalar a história com uma homenagem ao cinema fica perdida e excessiva dentro do longa-metragem. E isso deixa os estereótipos pulando na tela e gritando: "eu sou um estereótipo!" O comentário pode parecer bairrista, mas não é. Lisbela e o Prisioneiro, apesar de tudo, é um bom filme. Começa tropeçando na falta de idéias originais, mas depois conquista pela simplicidade e pela delicadeza com que Guel Arraes conduz sua história.

Selton Mello e Débora Falabella (esta, mesmo com aquele sotaque horroroso de novela da Globo) estão completamente à vontade nos papéis. Os coadjuvantes estão corretos. Marco Nanini reprisa bem, mas sem necessidade o papel de matador, Tadeu Mello parece que só sabe fazer o mesmo personagem (o mais caricato e mais executável do filme) e Bruno Garcia emplaca um sotaque carioquês engraçadinho. A surpresa é Virgínia Cavendish, que consegue equilibrar sua interpretação num misto perfeito de melodrama e comédia. Lisbela e o Prisioneiro não é tão engraçado quanto poderia, não é tão encantador quanto deveria, não é tão original quanto se gostaria. O filme reproduz modelos, mas consegue sair ileso por causa do visível empenho de todos em fazer um filme bonitinho. Num tempo em que muito filme brasileiro surge querendo ser obra-prima, querer ser bonitinho é bem simpático. Simpático como Lisbela e como Leléu.

Lisbela e o Prisioneiro
Lisbela e o Prisioneiro, Brasil, 2003
Direção: Guel Arraes.
Elenco: Débora Falabella, Selton Mello, Virginia Cavendish, Marco Nanini, Andre Mattos, Bruno Garcia, Tadeu Mello, Lívia Falcão, Paula Lavigne, Aramis Trindade, Heloísa Perissé.
Roteiro: Guel Arraes, Jorge Furtado e Pedro Cardoso, baseados na peça de Osman Lins. Produção: Paula Lavigne. Fotografia: Uli Burtin. Edição: Paulo Henrique Farias. Direção de Arte: Cláudio Amaral Peixoto. Música: João Falcão e André Moraes. Figurinos: Emília Duncan. Canções: Caetano Veloso, Zé Ramalho & Sepultura, Zéu Brito.


 
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