A NOITE AMERICANAVinte minutos antes da sessão. Esse foi o combinado. Eu me atrasei e perdi metade do tempo que teria com ele antes do filme. Cogitei encontrá-lo irritado com a demora, mas François se distraía com livros sobre cinema que eram vendidos no café. Havia uma foto dele na parede, entre muitas outras de grandes nomes do filme francês. Para mim, ele sempre será o maior deles. Cutuquei suas costas e o cumprimentei. Justifiquei o atraso pelo amor ao cinema - estava vendo outro filme. Ele simplesmente sorriu e disse para sentar.
François parece que nunca fica zangado. Seu rosto mostra o menino de seu primeiro filme. Menino que levou para tela outras quatro vezes. Criança era uma de suas paixões. Talvez por causa dos problemas que teve na infância, talvez porque simplesmente gostava de ser generoso com os pequenos.
Os pequenos... sempre prometi que nunca usaria este termo para falar de crianças. Seres provavelmente mais imensos que os adultos. Seres provavelmente tão imensos quanto o homem que estava na minha frente.
De súbito, percebi que ele esperava que eu me recuperasse do meu pequeno devaneio. Voltei a mim rapidamente, com as bochechas um pouco mais vermelhas. Tinha deixado meu entrevistado esperando mais uma vez. E já seria difícil entrevistá-lo. Eu, que não sou de ter ídolos, estava na frente de um. Talvez do único. Fui direto ao assunto e confessei que ele era meu cineasta favorito. "Você não deve ter visto muitos filmes então", retrucou, brincando comigo. Eu disse que havia assistido a muitos filmes, muitos mesmo, mas que ninguém me abalava tanto quanto ele. Ele nem deu importância ou, pelo menos, não prolongou o assunto.
Insisti que era a delicadeza de seus longas que me comovia. Disse que
A Noite Americana tinha uma importância muito particular na minha vida: tinha sido cenário da minha primeira noite de amor. Amor de verdade. Ele me olhou admirado e pediu para eu detalhar o que mais me agradava nos filmes dele. Pensei: mania de entrevistador, virou o jogo. Então, assumi meu novo papel e disse que amava o carinho com que ele tratava as crianças em
Na Idade da Inocência, a pureza com que se declarava apaixonado pelo sexo oposto em
O Homem que Amava as Mulheres, a liberdade que oferecia a seus personagens - e que parecia oferecer ao mundo - em
Uma Mulher para Dois e a franqueza com que se recriava nas telas na série Antoine Doinel.
Eu amava tudo em relação àquele homem. E estava prestes a ver, pela terceira vez, sua declaração de amor ao que eu mais amava na vida, o cinema. Em alguns minutos,
A Noite Americana iria começar. "O que eu mais gosto nos seus filmes, senhor Truffaut, é como eles parecem absolutamente apaixonados. Simples como um bilhete de um namorado". Ele sorriu de novo. Parecia dizer que era assim simplesmente porque tudo deveria ser assim. Neste momento, as pessoas começaram a entrar no cinema. Eu disse: "vamos?". Ele falou que não. Disse que tinha outro compromisso com outro sonhador. Agradeceu pelo papo, pelo café e se despediu. Levantei, apertei sua mão e disse: "eu te amo, François". Ele pôs as mãos no bolso, ajeitou o cachecol e desceu as escadas. Abri os olhos na sala de projeção.
O filme Um travelling numa Nice cenográfica revela o primeiro rosto conhecido: é Jean-Pierre Léaud, que encarnou cinco vezes o alter ego do cineasta. Ele sobe as escadas e caminha em direção a uma cena de bofetada. Existem muitos filmes sobre cinema, mas nenhum deles é tão apaixonado como
A Noite Americana. Talvez porque hajam muitos cineastas apaixonados pelo cinema, mas ninguém faz tanta questão de deixar isso claro de uma forma tão doce.
François Truffaut abre as filmagens de
Eu vos Apresento Pamela como pretexto para apresentar seu amor incondicional pelo que faz. Revela bastidores, detalhes técnicos, nos convida a conhecer sua equipe e o passo a passo do making off de um filme. Isso bem antes dos making off virarem moda. Mas não é isso que importa. Não importa conhecer o funcionamento de um universo. Não importa saber do que acontece nos corredores dos hotéis e nem acompanhar cada ator defendendo seus papéis - e as funções de seus colegas - com tanta entrega e tanta leveza, como se participassem da mais divertida brincadeira de suas vidas.
O que importa aqui é perceber que Truffaut explora todas as possibilidades do cenário, brinca com todos os enquandramentos e movimentos de câmera, esgota ao máximo os recursos da montagem. Brinca com todos os aspectos do cinema para fazer cinema. Brinca inclusive de ser ator. Participa da brincadeira como todo mundo. Remete, na pele de uma fabulosa Valentina Cortese, aos grandes astros. Cria e modifica a qualquer momento seu texto. Deixa a música conduzir cenas inteiras - suprime falas e aumenta o som.
A Noite Americana é bem mais que um filme sobre cinema.
A Noite Americana é o próprio cinema.
...e então o telefone toca. É o compositor, pronto para mostrar o tema que criou para determinada cena. Truffaut ouve atento e abre um pacote que acabara de chegar: livros. A música de George Delerue serve de trilha sonora para uma homenagem a grandes mestres do cinema: o cineasta atira na mesa livros sobre Bergman, Godard, Eisenstein e Hitchcok. Depois, comanda sua equipe para uma cena externa. O caminho é pela rua Jean Vigo. À noite, exausto, sonha com prazos, problemas e com um menino que anda por uma rua escura, onde encontra o que muitos podem chamar de um pequeno pedaço do paraíso. Em
A Noite Americana, Truffaut diz que ama o cinema e explica o porquê.
A Noite Americana La Nuit Américaine, França, 1973.
Direção: François Truffaut.
Elenco: Jacqueline Bisset, Valentina Cortese, Alexandra Stewart, Jean-Pierre Aumont, Jean-Pierre Léaud, François Truffaut, Nathalie Baye, Dani, Jean Champion, Nike Arrighi, Maurice Seveno, David Markham, Bernard Menez, Gaston Joly, Zénaïde Rossi, Xavier Saint-Macary, Walter Bal, Jean-François Stévenin, Pierre Zucca, Graham Greene e a voz de Georges Delerue.
Roteiro: Jean-Louis Richard, Suzanne Schiffman e François Truffaut.
Produção: Marcel Berbert.
Fotografia: Pierre-William Glenn.
Edição: Martine Barraqué e Yann Dedet.
Direção de Arte: Damien Lanfranchi.
Música: Georges Delerue.
Figurinos: Monique Dury.