[f i l m e s d o c h i c o]

29 de jun. de 2005

O dia em que a terra parou



A paranóia causada pelos ataques do 11 de setembro de 2001 parece crescer a cada dia. Existe muita gente disposta a enxergar alusões, referências, conseqüências da tragédia em qualquer lugar, no dia-a-dia ou ou na arte. Steven Spielberg escolheu justamente este clima de instabilidade para rodar seu novo filme. Filme com uma proposta simples: a Terra foi invadida por alienígenas e eles querem nos matar. Todas as leituras possíveis já começaram a ser feitas e todas elas passam pelos reflexos que o terror espalhou nos últimos quatro anos, sobretudo em solo norte-americano.

De acordo com o diretor, o momento parecia ideal para fazer o filme (como parecia a iminência da Segunda Guerra Mundial ou o auge da Guerra Fria) e, diante disso, ele espalha ecos dessa paranóia pelo longa. Foram os terroristas?, pergunta Rachel a seu pai quando ele explica que sua cidade está sendo atacada. Mas muito além de qualquer alegoria política que possa parecer ser, Guerra dos Mundos, o livro que H.G. Wells escreveu no fim do século XIX, é uma obra de ficção, que usa o fantástico para divertir. Uma definição que cabe muito bem ao responsável por sua última encarnação.

Spielberg não é apenas o mais bem sucedido diretor do cinema pop, mas também é seu maior criador. Toda sua carreira é composta por filmes que exploraram esse namoro com a fantasia. O maior medo em relação a seu envolvimento com o material de Wells era como o cineasta bom moço lidaria com o fatalismo e a violência do livro. Muito mais esperto do que se acha, Spielberg usou o cenário e a história orginais, mas mudou os protagonistas, tendência em voga no cinema para modernizar e multiplicar as possibilidades de uma obra. Temos uma família no comando da ação. A cota bonzinho acaba aí.

O talento para criar o suspense, para envolver o espectador, característica presente em quase toda sua obra, está em seu estado mais avançado. E Spielberg não se acovarda e, inclusive, se aproveita desse dom para incorporar o espírito original da obra, pessimista, implacável, violento. Consegue construir seqüências físicas, exaustivas, onde o limite entre a tela e quem assiste desaparecem. É o diretor mais povão de Hollywood, é tão bom fazendo o que faz que não deveria se aventurar pelos filmes sérios.

E ainda é inteligente.

Guerra dos Mundos não trata muito bem os Estados Unidos. O mundo inteiro está sob ataque, mas somente vemos a destruição que acontece na terra de George W. Bush. E há muitas cenas violentas. O que mais se parece com um herói é um homem de comportamento psicótico, interpretado por Tim Robbins até com certa habilidade. Não há redenção, ninguém salva ninguém, o fim da história não passa pelo militarismo norte-americano. Todos somos alvo em potencial. As coisas não são tão simples assim.

GUERRA DOS MUNDOS
War of The Worlds, Estados Unidos, 2005.
Direção: Steven Spielberg.
Roteiro: Josh Friedman e David Koepp, baseados no livro homônimo de H.G. Wells.
Elenco: Tom Cruise, Dakota Fanning, Justin Chatwin, Tim Robbins, Miranda Otto, David Alan Basche, Yul Vasquez, Morgan Freeman, Gene Barry, Ann Robinson.
Fotografia: Janusz Kaminski. Montagem: Michael Kahn. Direção de Arte: Alex McDowell. Música: John Williams. Figurinos: Sabine Daigeler. Produção: Kathleen Kennedy. Site Oficial: Guerra dos Mundos.

rodapé: vi o trailer de Água Negra, do Walter Salles. Nada demais. Vi o trailer de 2 Filhos de Francisco, de Breno Silveira. O mundo está perdido. E o filme não tem nenhum alienígena. Quer dizer... depende do ponto de vista.

nas picapes: Man on The Moon, REM.

28 de jun. de 2005

No tom certo



Dar o espaço certo ao exagero é uma missão muito difícil para qualquer artista. Poucos conseguem sucesso aos explorar esses limites que o que têm de nebulosos, têm de tênues. O texto de Inconscientes é todo baseado em sua capacidade de ser afetado sem sair do tom. E impressiona como o diretor Joaquín Oristrell é feliz em assumir o excesso: há um equilíbrio complicado de conseguir entre o escrachado e o sério. Há uns ecos de Pedro Almodóvar no início, embora o resultado seja muito diferente. A direção dá tanta consistência ao absurdo que ele se torna plausível. É louvável quando um cineasta acredita no seu filme.

E o roteiro é inteligente: brinca com Freud numa história de suspense que aborda alguns tabus de maneira leve e natural - e é construído quase que como uma homenagem ao cinema. Nada totalmente original, mas uma delícia de ver. A montagem acompanha o ritmo do filme, que tem fotografia esperta, sofisticada, quase hitchcockiana em alguns momentos. O timing do elenco é muito bom: a protagonista Leonor Watling, que pecava por estar além do tom em Minha Mãe Gosta de Mulher, consegue se encontrar aqui, ao lado de um inspirado Luis Tovar e da ótima Mercedes Sampietro. Inconscientes é a maior supresa deste ano até agora.

INCONSCIENTES
Inconscientes, Espanha/Alemanha/Itália/Portugal, 2004.
Direção: Joaquín Oristrell.
Roteiro: Dominic Harari, Joaquín Oristrell e Teresa Pelegri.
Elenco: Leonor Watling, Luis Tosar, Alex Brendemühl, Mercedes Sampietro, Núria Prims, Ana Rayo, Juanjo Puigcorbé, Marieta Orozco.
Fotografia: Jaume Peracaula. Direção de Arte: Llorenç Miquel. Música: Sergio Moure. Montagem: Miguel Ángel Santamaría. Figurinos: Sabine Daigeler. Produção: Mariela Besuievski, Marta Esteban, Josean Gómez e Gerardo Herrero. Site Oficial: Inconscientes.

rodapé:
A Hora da Zona Morta, de David Cronenberg.
A revisão veio na hora. Continua muito bom, mas tem algo de datado. Cronenberg não dirige bem o Christopher Walken, que muitas vezes está canastrão. Guarda um encanto nostálgico, mas impressiona bem menos numa época onde é pecado não se apoiar tanto no mágico.

nas picapes: Blue Monday, New Order.

Muita água para pouco sapo



Chove muito e há vários dias em Salvador. Quatro dias de folga que seriam convertidos em múltiplas idas ao cinema terminaram em duas visitas apenas.O São João dos meus sonhos deu com os burros n'água. Foi numa tarde de muita chuva que eu fui ao Cinema do Museu Geológico da Bahia assistir A Profecia dos Sapos. A animação francesa que traz o dilúvio para os dias de hoje segue o caminho oposto ao traço por computador que domina Hollywood, o que já era de se esperar, mas a diferença não se aprofunda muito.

No longa europeu, é mais difícil se estabelecer quem é bom ou mau - os animais carnívoros, por exemplo, têm fome e querem comer - , mas essa indefinição não consegue escapar muito dos lugares comuns. Como o público-alvo é mesmo as criancinhas mais jovens, isso assume uma importância secundária. Existe uma preocupação em ser bem diferente do que é feito nos Estados Unidos, mas as lições de moral são bem parecidas e parecem meio tolas quando se cobra comportamento humano dos animais (como há homens e bichos, não é com os segundos que a criança se identifica). Um problema é a falta de uma resolução: o filme termina sem dizer porque foi feito. Isso é ruim.

A PROFECIA DOS SAPOS
La Prophétie des Grenouilles, França, 2003.
Direção, Produção e Canções: Jacques-Remy Girerd.
Roteiro: Jacques-Remy Girerd, Antoine Lanciaux e Iouri Tcherenkov.
Elenco: Michel Piccoli, Anouk Grinberg, Annie Girardot, Bernard Bouillon, Romain Bouteille, Raquel Esteve Mora, Patrick Eveno, Michel Galabru, Coline Girerd, Manuela Gourary, Véronique Groux de Miéri, Roseline Guinet, Kevin Hervé, Jacques Higelin.
Fotografia: Benoît Razy. Montagem: Hervé Guichard. Direção de Arte: Jean-Loup Felicioli. Música: Serge Besset. Site Oficial: A Profecia dos Sapos.

nas picapes: Rainy Days and Mondays, The Carpenters.

27 de jun. de 2005



A Versátil colocou no mercado a primeira cópia disponível de Rogopag - Relações Humanas, um daqueles filmes episódicos dirigidos por grandes nomes do cinema europeu, moda nos anos 60 e 70. No longa de 1963, Godard, Pasolini, Rossellini e Ugo Gregoretti (cujas iniciais fizeram o título) unem suas forças. O maior problema é que não há muita unidade entre os quatro curtas que compõem o filme, mas dois deles são especialmente muito bons.

Pureza, de Roberto Rossellini.

Parece haver um descaso com o tempo. Rossellini gasta muito para mostrar quem é sua personagem (a aeromoça recatada que manda fitas de vídeo para o namorado que raramente vê) e aperta o passo na hora da ação (o assédio de um empresário a protagonista). Não fica muito clara a intenção do diretor, que éca por explicar demais, justificar os atos do antagonista. O desfecho parece bem apressado.

O Mundo Novo, de Jean-Luc Godard.

Godard, Godard, para que explicar? O episódio é o mais curto. Um romance entra em crise às vésperas do holocausto. Godard parece impor o caos nas vidas das personagens, sobretudo na mulher, que muda violentamente o modo de agir e que parece não mais conhecer algumas idéias e conceitos básicos à vida social. Não deixa de ser curioso, mas sofre por deixar o final muito em aberto. Pareceu que faltou o que dizer.

A Ricota, de Pier Paolo Pasolini.

O engraçado é que o diretor de que eu menos gosto foi quem fez o episódio que eu mais gostei. Pasolini raramente foi tão bom diretor. O filme se utiliza de uma certa desordem felliniana para transformar o homem comum num mártir, numa alegoria direta à crucificação de Jesus Cristo. As interferências de cor no filme em preto-e-branco, com verdadeiras instalações humanas, são geniais, assim como a trilha sonora, que acompanha algumas cenas dignas dos melhores filmes dos Trapalhões (há vários filmes bons do quarteto). E ter Orson Welles, em ótima forma, no elenco é algo luxuoso.

O Frango Caseiro, de Ugo Gregoretti.

Primeira experiência com o diretor e uma excelente surpresa. O filme faz um ataque inteligente e sutil (tudo bem, não tão sutil assim) ao capitalismo. Do Topo Gigio ao vendedor de terrenos à beira de um lago, Gregoretti dá múltiplos exemplos de como nossa vida está infectada pela compulsão consumista. As intervenções do especialista no assunto, com voz a la Dr. Phibes analisando o comportamento do consumidor atual, tentam embasar a crítica, mas o melhor mesmo é ver a molequinha fofa do filme reprisar toda a ideologia mercadológica da época.



A Loja da Esquina (1940), de Ernst Lubitsch.

Lubistch é um dos maiores gênios da comédia no cinema. Este filme está bem aquém de seus outros trabalhos, mas ainda assim é bem bom. James Stewart e Margaret Sullavan mereciam mais tempo para seus duelos porque quando eles acontecem os dois estão sempre muito afiados. Lubistch sabe construir os arredores, criando coadjuvantes muito bons e abusando da piada repetida para fazer graça.



A Face do Crime (1954), de Edward D. Wood Jr.

No começo parece melhor dirigido que os outros dois que tive o prazer de ver do cineasta, mas a imagem passa rápido. O roteiro é pior que a direção e o elenco, mais uma vez, muito ruim. Serve como comédia, às vezes. A tentativa de Wood parece ser de criar uma discussão psicológica nos moldes de Glen ou Glenda, de um ano antes, onde conseguiu momentos brilhantes.



O Gato Fritz (1972), de Ralph Bashki.

A amoralidade é o que mais chama atenção na criação de Robert Crumb (o documentário sobre ele é muito bom). Com as garras de Bashki, ela ganha contornos psicotrópicos, que por momentos encantam pela poesia visual, mas que terminam em virtuose exagerada. No entanto, o niilismo impregando nas personagens é sempre um ponto a favor. Um filme bem pornográfico em todas as leituras da palavra.



Rollerball - Os Gladiadores do Futuro (1975), de Norman Jewison.

Correndo o risco da impulsividade, é a obra-prima de Jewison, um diretor tão eclético quanto irregular. O misto de setentismo com uma construção visual quase exata de um futuro próximo é especialmente atrativa, mas o que é o melhor aqui é que não há muita intenção em explicar nada. Esses filmes futuro-pessimistas dos anos 70 sempre me pareceram muito encantadores.



Jogos Mortais (2004), de James Wan.

Pífia tentativa de reprisar Seven (David Fincher, 95) no que isso tem de bom e de ruim. Recorre a uma fórmula que mistura choque e violência para tentar parecer original, mas acaba simulando a tática do você-sabe-quem para aparecer. O texto degringola com tanta plenitude a certo momento que é difícil saber o que seria pior. E o diretor e o roteirista deveriam ser presos por dar idéias para os psicopatas de plantão. A ênfase na crueldade demonstra que a diferença dos dois para os malucos assassinos é bem pouca.

26 de jun. de 2005

Relutei um pouco, mas vou responder o questionário indicado pela Fer. Não vou repassar pra ninguém porque adoro quebrar correntes. Mudei alguns tópicos (nada substancial). As listas são totalmente mutáveis porque a vida é assim. Se eu lembrar de alguma coisa que valha meter a mão na lista de novo, eu mudo. Não acredito muito em "gêneros", não fiz muito esforço nas questões setorizadas.

1 melhores filmes dos últimos anos (desde 1998)

Elefante, de Gus Van Sant; Gangues de Nova York, de Martin Scorsese; A Última Noite, de Spike Lee; A Viagem de Chihiro, de Hayao Miyazaki; X-Men 2, de Bryan Synger; Dolls, de Takeshi Kitano; Antes do Pôr-do-Sol, de Richard Linklater; Kill Bill: Vol. 1, de Quentin Tarantino; O Pântano, de Lucrecia Martel; Bem Vindos, de Lukas Moodysson; Os Excêntricos Tenenbaums, de Wes Anderson; Cidade dos Sonhos, de David Lynch.

2 filmes da minha vida

Aurora, de F. W. Murnau; Gritos e Sussurros e Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman; Onde Começa o Inferno, de Howard Hawks; Cantando na Chuva, de Gene Kelly e Stanley Donen; Janela Indiscreta, Intriga Internacional e Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock; Um Homem com uma Câmera, de Dziga Vertov; Elefante, de Gus Van Sant; A Regra do Jogo, de Jean Renoir; Os Incompreendidos e Na Idade da Inocência, de François Truffaut; Tempos Modernos, de Charles Chaplin; Cidadão Kane, de Orson Welles (não tenho vergonha de achar que este é o melhor dele); Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder; Este Mundo é um Hospício, de Frank Capra.

3 atores

Marlon Brando, James Stewart, Cary Grant, Charles Chaplin.

4 atrizes

Audrey Hepburn, Julianne Moore, Agnes Moorehead, Jeanne Moreau, Laura Betti.

5 diretores

Billy Wilder, Martin Scorsese, François Truffaut, Howard Hawks, Alfred Hitchcock, Charles Chaplin.

6 filme brasileiro

A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos.

7 filme de guerra

Glória Feita de Sangue, de Stanley Kubrick.

8 ficção-científica

2001 - Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick.

9 musical

Cantando na Chuva, de Gene Kelly e Stanley Donen.

10 clássicos da infância e juventude

Clube dos Cinco e Curtindo a Vida Adoidado, de John Hughes; Conta Comigo, de Rob Reiner; Superman e Os Goonies, de Richard Donner; Hatari!, de Howard Hawks; O Pecado Mora ao Lado, de Billy Wilder.

11 filmes que não mereciam ter ganho o Oscar de melhor filme

Rocky, que ganhou de Taxi Driver; Uma Mente Brilhante, que ganhou de A Sociedade do Anel.

25 de jun. de 2005



O Exorcista: o Início (2004), de Renny Harlin.

Péssimo. Há algo de interessante na premissa (padre desiste da fé e tem que confrontá-la de novo), mas o tratamento é tão primário que nada sobra. O filme se resume a um festival de escatologia e de recursos fáceis, que não assustam ninguém. Não vi nada que justifique o nome de Vittorio Storaro, o mestre, na fotografia. A trilha é vergonhosa. Vergonha maior é saber que refilmaram 90% das cenas depois da demissão do Paul Schrader e que a versão dele vai ser relançada (ou já foi?). Que mico!



As Brumas de Avalon (2001), de Uli Edel.

O que esperar do diretor de Corpo em Evidência, aquela miséria com a Madonna? Um trabalho ruim mesmo que o tema seja Camelot e seus personagens. Filmado para TV em formato de série (deve ter sido uma tortura acompanhá-la até o final) naquele formato grandes eventos mitológicos. Deturpa o que pode dos livros de onde tira o título. A maioria dos atores é ruim (Joan Allen, mesmo com quilos de frases-clichê, é a melhor em cena) e os cenários parecem às vezes que vão cair. Qual o melhor filme sobre Arthur e a Távola Redonda e Avalon e Morgana? Quem se arrisca?

21 de jun. de 2005

Segredos de alcova



Tudo o que acontece entre quatro paredes costuma sempre chamar muita atenção. O casamento em crise leva Sandrine Bonnaire ao psicanalista que não é psicanalista. A troca de personas a princípio se parece bem interessante, mas logo Patrice Leconte, que já foi tão bem-sucedido ao falar de amor em O Marido da Cabeleireira (1990), cai em tantas armadilhas para tornar seu filme estranhozinho que dá com os burros n'água.

Como Bonnaire é um atriz grande, consegue contornar boa parte do que o roteiro tenta fazer com sua personagem (torná-la misteriosamente vilã, por exemplo, com caráter e a origem se tornam questionáveis). Fabrice Luchini, que passa o filme inteiro com cara de pastel (quando não faz cara de de saltenha), não fornece o contraponto necessário para o filme se desenvolver. Então, falar de experiências e fantasias sexuais, o que pode ser bem excitante, se converte num blá-blá-blá sem muito atrativo.



Ainda não sei o que pensar desse Tentação. Fica na corda bamba entre o mais-do-mesmo dos filmes sobre relacionamentos e um obra com algo a dizer a partir de uma pequena história sobre adultério e troca de casais. Há aquele clima interiorano, cenário perfeito para que os dramas particulares de um casamento ganhem imensas proporções nas vidas simples de seus protagonistas. Há um certo cuidado em evitar frases feitas e situações clichê, mas não consegue uma conclusão eficiente. Não uma conclusão de história, mas de idéia.

Mark Ruffalo é o melhor em cena. Cada vez melhor ator, ele tem o papel mais tridimensional, mais redondo. Naomi Watts está ok e Laura Dern às vezes não consegue assumir direito a quase-neurose de sua personagem. Peter Krause só não está melhor porque o roteiro trata seu papel com descaso e sob uma visão condenatória. O melhor é quando as personagens se mostram perdidas. Aí o filme assume um tom bucólico que traz alguma discussão sobre comportamento e procura por satisfação.

CONFIDÊNCIAS MUITO ÍNTIMAS
Confidences Trop Intimes, França, 2004.
Direção: Patrice Leconte.
Roteiro: Jérôme Tonnerre.
Elenco: Fabrice Luchini, Sandrine Bonnaire, Michel Duchaussoy, Anne Brochet, Gilbert Melki, Laurent Gamelon, Hélène Surgèrem, Urbain Cancelier.
Fotografia: Eduardo Serra. Direção de Arte: Ivan Maussion. Música: Pascal Estève. Montagem: Joëlle Hache. Figurinos: Sandrine Kerner. Produção: Alain Sarde. Site Oficial: Confissões Muito Íntimas.

TENTAÇÃO
We Don´t Live Here Anymore, Estados Unidos/Canadá, 2004.
Direção: John Curran.
Roteiro: Larry Gross, baseado nas histórias curtas We Don't Live Here Anymore and Adultery, de Andre Dubus.
Elenco: Mark Ruffalo, Laure Dern, Naomi Watts, Peter Krause, Sam Charles, Haili Page, Jennifer Bishop, Jennifer Mawhinney, Amber Rothwell.
Fotografia: Maryse Alberti. Direção de Arte: Tony Devenyi. Música: Michael Convertino. Montagem: Alexandre de Franceschi. Figurinos: Katia Stano. Produção: Jonas Goodman, Harvey Kahn e Naomi Watts. Site Oficial: Tentação.

nas picapes: Get Me Away From Here I'm Dying, Belle & Sebastian.



Sob o Domínio do Medo, de Sam Peckinpah.

Não fosse de conteúdo tão sexista, este filme seria um excepcional estudo sobre a violência que o homem guarda em si. Peckinpah, o mais macho dos cineastas, vai ao interior da Inglaterra para condenar a personagem de Susan George como pivô das agressões que ela, seu marido e sua casa sofrem dos vizinhos rústicos e beberrões. Os estereótipos estão por todos os lados e a brutalidade parece querer ser explicada. A fotografia e a trilha sonora são impecáveis, mas o texto não passou na prova. Irritado só porque o filme é politicamente incorreto? Não, isso não vem ao caso, e, às vezes, pode ser bem interessante. Apenas insatisfeito com um tratamento tão primário a uma premissa tão promissora.



Robot Monster, de Phil Tucker.

Besteira futurista-catastrófica que causa alguma diversão. Primo-irmão de Edward D. Wood Jr, Tucker consegue dar um pouco mais de consistência a sua historinha, mas perde feio quando o quesito é filosofia, o que sobrava em Wood. Interessante ver como o filme economiza em absolutamente tudo: cenários, locações, direção de arte; o mais caro foi a - boa - trilha de Elmer Bernstein. Filme a preço de banana, possivelmente, já que estamos falando de macacos espaciais...

19 de jun. de 2005



Um Homem com uma Câmera, de Dziga Vertov.

A proposta está clara desde o começo. Radicalizar: negar a literatura e o teatro e criar uma narrativa cinematográfica. A genialidade não está quando Vertov mostra as cenas do cotidiano, o que consegue capturar com delicadeza, mas quando ele revela o processo. Além de mostrar a intervenção do cameraman em dezenas de seqüências, ele usa a montagem para se comunicar com o espectador: congela os takes e vai para a mesa de edição, move o quadro como num projetor. Vertov talvez tenha sido o primeiro artista exclusivamente do cinema. E houve bem poucos como ele. Obra-prima.



Repulsa ao Sexo, de Roman Polasnki.

A segunda experiência foi ainda melhor. Polanski perverte o ambiente para acompanhar a personagem. A fotografia, digamos expressionista, invasiva, cheia de closes, é agente para o delírio. Apesar de parecer às vezes perturbada demais, a trilha sonora tem muitos momentos geniais, sobretudo quando se mostra mais experimental. Catherine Deneuve nem está tão bem assim, mas é totalmente crível. Um filme sobre a mente que controla o corpo.

16 de jun. de 2005

Batman: ano zero



Christian Bale não é um bom ator. Quem o observa com mais atenção percebe logo que ele tem alguns trejeitos de canastrão. Embora isso apareça em vários momentos de Batman Begins, seja no tom de voz adotado pelo ator, seja em cenas que precisavam expressões mais delicadas, Bale consegue ser um bom Bruce Wayne. George Clooney, que tem o mesmo problema de seu herdeiro e que foi o astro do filme que enterrou a personagem no cinema por oito anos, era um pouco melhor, mas teve o diretor errado.

É justamente por causa do estrago feito pelo seu antecessor que Christopher Nolan reescreveu o passado do herói no cinema. O título já indica que este filme começa do começo. E, apesar de tomar várias liberdades históricas para com a personagem, consegue fundamentá-las bem e se manter fiel ao, olha o clichê, "espírito" da criação de Bob Kane. Engraçado perceber que foi o autor do medíocre Blade Trinity, a que curiosamente eu assisti esta semana, quem escreveu o argumento e co-assina o roteiro.

Primeiro, é extremamente feliz a idéia de estruturar o roteiro a partir do medo. Isso pontua todo o filme, contamina desde o tratamento dado a Bruce Wayne até as personagens que o cercam. O clima sombrio está de volta depois do carro alegórico de Joel Schumacher, Batman está mais maduro. Os flashbacks, possível herança do mais famoso filme de Nolan, que poderiam seguir o caminho da pieguice ou tentar excessivamente fundamentar as motivações da personagem, são utilizados com habilidade, nos momentos certos.



Se Bale é um protagonista apenas eficiente, seus coadjuvantes são perfeitos. A fofinha da Katie Holmes está sempre bem em cena e há pequenas porém excelentes performances de Gary Oldman, como o ainda sargento Gordon, Liam Neeson, numa interpretação mais consistente que a de Kinsey (Bill Condon, 2004), e Cillian Murphy, muitíssimo à vontade com a perturbação do Espantalho, que, por sinal, ganhou um tratamento diferenciado e, por isso mesmo, muito bom.

Os acertos do casting ainda incluem Tom Wilkinson, um ator que nunca recebe tantos elogios quanto merece: está absolutamente fantástico num papel que facilmente poderia cair na mesmice. Mas é Michael Caine quem domina todas as cenas em que aparece. O mordomo Alfred, que já era um dos melhores personagens da DC, ganhou uma performance tão legítima quanto emocionada - é uma honra assistir a um filme com um ator destes.

Mas toda a discussão sobre Batman Begins parece ser se ele é ou não o melhor filme da personagem. Os elogios ao longa foram tantos que passaram por cima do maior defeito do filme: um certo didatismo em querer mostrar o passo a passo da construção do herói. Defeito que é o maior, mas que nem é tão grande assim. Os acertos são muitos mais, principalmente no desenho da personagem. O Batman que aparece na tela é o Batman dos quadrinhos, é o herói (anti-herói?) à parte, que vive às sombras, que raramente se mostra. Que se move pela justiça. Se é melhor que os longas de Tim Burton, trabalhos de que eu gosto muito, realmente não sei. Talvez estejam no mesmo nível, embora sejam de certa forma bem diferentes. Esta não é a discussão. Batman está de volta. E voltou em forma.

BATMAN BEGINS
Batman Begins, Estados Unidos, 2005.
Direção: Christopher Nolan.
Roteiro: Christopher Nolan e David S. Goyer, a partir do argumento de Goyer, baseados na personagem criada por Bob Kane para a DC Comics.
Elenco: Christian Bale, Michael Caine, Liam Neeson, Katie Holmes, Gary Oldman, Cillian Murphy, Tom Wilkinson, Rutger Hauer, Ken Watanabe, Mark Boone Junior, Linus Roache, Morgan Freeman, Larry Holden, Sara Stewart, Gus Lewis, Richard Brake, Rade Serbedzija, Emma Lockhart.
Fotografia: Wally Pfister. Direção de Arte: Nathan Crowley. Música: James Newton Howard e Hans Zimmer. Montagem: Lee Smith. Figurinos: Lindy Hemming. Produção: Larry J. Franco, Charles Roven e Emma Thomas. Site Oficial: Batman Begins.

nas picapes:
The Concept, Teenage Fanclub
What You Do To Me, Teenage Fanclub
Take Control, Weezer.

De volta às origens



Para começar, não tem nada a ver com o clássico Museu de Cera, estrelado por Vincent Price, em 1953, além do mesmo título original. Mais: a presença de Paris Hilton no elenco não tem grande destaque e, conseqüentemente, isso ajuda. Colocando de lado alguns maneirismos de câmera que já deveriam ter saído de moda, é um filme que se leva a sério como história de suspense e de terror, coisa rara num gênero que, quando procura se reiventar, às vezes tropeça feio.

O tema, a criação de um museu de cera feitos com... (segredo), dá um tom incrivelmente nostálgico ao filme. Tom que, se não é plausível ou se não cabe hoje em dia (o que eu francamente discordo - acho muito bem situado), faz falta no universo de "reality show" que toma conta dos filmes do gênero hoje. Ponto para o diretor novato e para o roteiro que se apropriam dos clichês para injetar adrenalina no espectador sem os recursos do cinema moderninho.

Curioso foi ir ao cinema apenas para ver se Paris Hilton seria assassinada por algum maníaco e me deparar com um filme bom, com clima de thriller das antigas. Elisha Cuthbert, acostumada a passar maus bocados na série 24 Horas, ajuda a manter o ritmo ágil. O duelo de famílias que se estabelece na seqüência final é conduzido com habilidade e possibilita algumas leituras e associações. Para minha grande surpresa, A Casa de Cera é bem acima da média e prova que há futuro para o filme de terror.

A CASA DE CERA
House of Wax, Estados Unidos, 2005.
Direção: Jaume Collet-Serra.
Roteiro: Chad Hayes e Carey Hayes, baseado em história de Charles Belden.
Elenco: Elisha Cuthbert, Chad Michael Murray, Brian Van Holt, Paris Hilton, Jared Padalecki, Jon Abrahams, Robert Ri'chard, Dragicia Delbert, Thomas Adamson, Sam Harkess, Murray Smith, Andy Anderson.
Fotografia: Stephen F. Windon. Direção de Arte: Graham Walker. Música: John Ottman. Montagem: Joel Negron. Figurinos: Graham Purcell. Produção: Gary Barber, Jay Roach, Roger Birnbaum, Jonathan Glickman e Nick Goldsmith. Site Oficial: A Casa de Cera.

rodapé: não falei nada quando saiu a notícia, mas o anúncio de Brett Ratner como diretor de X-Men 3 me deixou preocupado.

nas picapes: Bring on the Dancing Horses, Echo & The Bunnymen.

15 de jun. de 2005

O dia em que o espaço foi retrô



O Guia do Mochileiro das Galáxias é a maior viagem. No espaço e no tempo, eu diria. Toda a concepção visual desta comédia intergaláctica é retrô. Tem cenas que remetem ao clássico maldito Os Trapalhões e a Guerra dos Planetas (Adriano Stuart, 1978), onde nossos heróis brasileiros plagiavam descaradamente a saga espacial de George Lucas. Naquele caso, o visual retrô ressaltava os defeitos de um filme ruim, mal escrito. Hoje, quase trinta anos depois, favorece o tom satírico de um longa bem interessante.

O livro de Douglas Adams, que co-adaptou o roteiro, aposta mais no humor que na ficção. Desenvolve as trajetórias de suas personagens a partir do absurdo, o que, no filme, se reflete principalmente na direção de arte. O "cult & cool" que impregna a obra está até no casting: Sam Rockwell, siderado, Zooey Deschanel, a bela esquisita da vez, e o anti-herói Martin Freeman. No meio do tom levemente afetado de alguns atores, quem mais cativa é o robôzinho depressivo que ganhou a voz de Alan Rickman.

Como, desde o começo, o filme se assume como brincadeira - a música da partida dos golfinhos para o espaço é uma delícia - o fake não incomoda, até cai bem. O Guia do Mochileiro das Galáxias é, provavelmente, o filme mais setenta dos anos 2000. Pelo menos, o mais kitsch-futurista da década. Funciona quase sempre e, quando não, ainda é simpático. A passagem de Garth Jennings das antologias musicais de Blur e R.E.M. para o cinema propriamente dito rendeu um filme bem legal.

O GUIA DO MOCHILEIRO DAS GALÁXIAS
The Hitchhiker's Guide to the Galaxy, Grã-Bretanha/Estados Unidos, 2005.
Direção: Garth Jennings.
Roteiro: Douglas Adams e Karey Kirkpatrick, baseados no livro de Adams.
Elenco: Martin Freeman, Mos Def, Sam Rockwell, Zooey Deschanel, John Malkovich, Anna Chancellor, Warwick Davis, Stephen Fry (narração), Helen Mirren (voz), Alan Rickman (voz), Bill Bailey (voz), Kelly Mcdonald, Bill Nighy, Richard Griffiths, Steve Pemberton, Thomas Lennon, Polly Jane Adams, Ian McNeice, Jason Schwartzman.
Fotografia: Igor Jadue-Lillo. Direção de Arte: Joel Collins. Música: Joby Talbot. Montagem: Niven Howie. Figurinos: Sammy Howarth e Sammy Sheldon. Produção: Gary Barber, Jay Roach, Roger Birnbaum, Jonathan Glickman e Nick Goldsmith. Site Oficial: O Guia do Mochileiro das Galáxias.

rodapé: o trailer só com narração de Guerra dos Mundos é o melhor de todos os que eu vi. Mas o triler de Sin City, que só chegou às minhas vistas hoje, é maravilhoso.

nas picapes: Manta Ray, Pixies.



Blade Trinity, de David S. Goyer.

Começa fraco e fica pior aos poucos. O visual é lamentável, do puro clipe ao mais luminoso comercial de sabonete. Muita câmera lenta, muita imagem rapidinha. E uma trilha eletrônica que não é ruim. Ruim mesmo é o que o diretor escreveu para a personagem de Ryan Reynolds. São as piadas mais sem graça dos últimos anos. E como o ator não ajuda... Parece que ator e diretor querem fazer o filme do Flash. Tsc tsc.



Anaconda 2 - A Caçada pela Orquídea Sangrenta, de Dwight Little.

Este aqui começa mal e melhora um pouco. Os grandes problemas do primeiro (atores incrivelmente ruins e um roteiro tão mal escrito que é impossível se divertir com ele) se repete aqui, mas depois que o clichê assume e aponta um vilão, o filme fica mais tragável. A cobra está mais bem feitinha, menos quando ela é completamente virtual. Não há como negar que tentar adivinhar qual a próxima vítima é bem legal, mas sobre muita gente viva...

13 de jun. de 2005

Vazio existencial indie



A memória para ser o tema central de um certo cinema independente norte-americano feito hoje em dia. Mais que ela, a nostalgia. O retorno ao bucólico período entre o fim da infância e o início da vida adulta. Impressiona o número de filmes que tratam do assunto, que se dedicam à "volta pra casa", ao confronto com a família, os amigos, os amores, o passado. O cinema independente norte-americano de hoje, ora vejam, vive do passado.

A estréia de Zach Braff na direção de um longa-metragem é um belo exemplo deste, digamos, setor. Um filme com intenções pequenas: identificação, a maior delas. E um filme com resultados pequenos. Talvez, sobretudo, por causa de sua subserviência a um modelo gasto, geralmente associado a uma busca incessante por algo que nunca assume uma forma muito sólida. Algo que mesmo o autor não sabe muito bem o que é. Conforto, reordenação do caos, discussão de relação.

O tom nostálgico, quase choroso, multiplicado pela trilha sonora (que tem muita coisa boa - mas sempre desconfie de um filme que começa com um hit do Coldplay), parece clamar por piedade, atenção. Zach Braff deve precisar muito de um afago. Talvez conseguisse com mais facilidade se tivesse abdicado de ser ator já que não tem muito talento para isso. Seu Andrew, além de perdido na vida, não é muita coisa. E sua perdição também nunca é muita coisa.

A imaturidade do filme se cristaliza no final preguiçoso. Braff fecha as arestas, resolve pendências em três ou quatro frases, descobre um caminho. A vida independente norte-americana é bem mais fácil. Pelo menos no cinema, ao som do Colplay.

HORA DE VOLTAR
Garden State, Estados Unidos, 2004.
Direção e Roteiro: Zach Braff.
Elenco: Zach Braff, Natalie Portman, Peter Sarsgaard, Ian Holm, Method Man, Jean Smart.
Fotografia: Lawrence Sher. Direção de Arte: Judy Becker. Música: Chad Fisher. Montagem: Myron Kerstein. Figurinos: Michael Wilkinson. Produção: Pamela Abdy, Gary Gilbert, Dan Halsted e Richard Klubeck. Site Oficial: Hora de Voltar.

nas picapes: Judas, Raul Seixas.

11 de jun. de 2005

Gosto dos Outros: Filipe Furtado



Zero de Conduta (Zéro de Conduite, 1933), de Jean Vigo.

Zero de Conduta está nas antologias há tanto tempo e é tão agradável de se ver que as pessoas já não percebem o tão radical ele é. Continua o melhor filme anarquista já feito e um que se arrisca na estética tanto quanto no discurso.

A Cruz dos Anos (Make Way for Tomorrow, 1937), de Leo McCarey.

O que fazer com os nossos velhos?. Yasujiro Ozu é provavelmente o cineasta que melhor cobriu tão espinhosa pergunta, mas meu filme favorito sobre o tema é este melodrama de McCarey. Orson Welles certa vez disse que este filme era capaz de fazer uma pedra chorar. Ele provavelmente tem razão.

Viagem a Itália (Viaggio in Italia, 1953), de Roberto Rossellini.

Sou convencido de que o cinema pode ser dividido entre antes e depois de Rossellini. Nós todos devemos algo a ele, mesmo que não se tenha certeza do quê. Há pelo menos meia dúzia de filmes de Rossellini tão perfeitos quanto Viagem a Itália, mas nenhum com final tão perfeito.

Hatari! (Hatari!, 1962), de Howard Hawks.

Howard Hawks ergueu um monumento a sua própria obra aqui. Deve ser o mais celebratório dos funerais. Tudo que importa ao cineasta está aqui e há um senso de liberdade que poucas vezes o cinema atingiu. Ao mesmo tempo é como se o filme nos lembrasse o tempo todo sobre a sua própria impossibilidade.

O Desprezo (Le Mépris, 1963), de Jean-Luc Godard.

Escondido no meio de O Desprezo há um plano onde Fritz Lang está saindo de uma sala de projeção na Cinecitta que cada vez que vejo me pega desprevenido. Um cineasta jamais filmou outro com tanta reverência e tristeza. Adoro quase todos os filmes de Godard, mas este é especial.

Badaladas à Meia-Noite (Chimes at Midnight, 1965), de Orson Welles.

O mais simples dos filmes. A batalha é merecidamente celebrada, mas o grande momento é mesmo quando o príncipe renega Falstaff, não há nada muito complicado acontecendo aqui mas é sem dúvidas um dos momentos mais gigantescos do cinema.

O Diabo Provavelmente (Le Diable Probablement, 1977), de Robert Bresson.

Bresson tem uma reputação excessiva de cineasta difícil (muito por culpa dos seus fãs e dele mesmo), mas há poucos filmes mais envolventes do que esse. É também prova de que Bresson esta longe de pertencer aos museus, é tão vital e radical quanto um filme de horror John Carpenter.

Aos Nossos Amores (À Nos Amours, 1983), de Maurice Pialat.

A cena do retorno do pai talvez seja a maior paulada de todo o cinema e por si só justificaria a inclusão do filme aqui. O realismo impressionista de Pialat está no auge aqui e ainda por cima há Sandrine Bonnaire aos 15 anos, este também é um grande retrato sobre uma jovem atriz se encontrando.

Amantes (Love Streams, 1984), de John Cassavetes.

O testamento de Cassavetes. Talvez não seja o seu melhor, mas foi com ele que me tornei fanático pelo cineasta, portanto é o meu favorito sentimental. Não me lembro de ter tido um choque estético tão grande quanto o de ver o filme pela primeira vez.

Água Fria (L'Eau Froide, 1994), de Olivier Assayas.

Tenho a tese de que todos os grandes filmes modernos são de alguma forma filmes de horror. Apesar de se passar na França, nos anos 70, poucos vezes me conectei tão diretamente com um filme. Assayas entende adolescência como poucos.

Mais dez incontornáveis: A Regra do Jogo (Jean Renoir), Os Carrascos Também Morrem (Fritz Lang), Caravana de Bravos (John Ford), No Silêncio da Noite (Nicholas Ray), Noite e Névoa (Alain Resnais), O Beijo Amargo (Samuel Fuller), Duas Garotas Românticas (Jacques Demy), A Mãe e a Puta (Jean Eustache), O Fator Humano (Otto Preminger), O Vento nos Levará (Abbas Kiarostami).



microentrevista

Qual foi seu primeiro filme no cinema?

O primeiro Batman.

Qual o cineasta que mais te instisga?

Em atividade provavelmente seriam Olivier Assayas, Kiyoshi Kurosawa e Abel Ferrara. Se fosse olhar para o passado seriam muitos pra escolher um só.

E o cinema brasileiro hoje, o que dizer?

O sistema de produção é todo errado, o que resulta num excesso de filmes merda e, o que me parece mais grave, uma dificuldade muito grande de certos projetos de cinema acontecerem. Agora, se formos pensar só nos filmes, creio que se comete com frequencia uma certa injustiça. Se pensarmos nos três ultimos anos, estamos de certo melhor do que por volta de 1999/2000. Não acho correto pegar e dizer que 2004 foi um ano muito ruim pro cinema brasileiro porque os filmes péssimos foram mais péssimos do que de hábito porque os filmes bons foram muito bons e isso me parece um dado muito mais importante. Quando há alguém fazendo um filme como O Prisioneiro da Grade de Ferro, as coisas não podem estar de todo mal.

O que te levou a escrever sobre filmes?

Engraçado, adora-se dizer que crítico é cineasta frustrado, mas desde que eu tinha 12, 13 anos de idade eu já gostava de escrever sobre filmes e música. Acho escrever uma forma de estender a experiência do filme por mais tempo e é uma continuação da conversa que eu tenho com os amigos. Abrir um blog foi uma forma de cobrir um universo de filmes maiores do que eu podia na Contracampo onde eu precisava obedecer a uma pauta.

Existe algum filme "incompreendido" que você ame?

Existem vários! Pareço ser meio que atraído por filmes malditos. New Rose Hotel, do Ferrara, para ficarmos num filme razoavelmente recente.



Filipe Furtado, 23, é estudante de cinema. Escreve além do blog Anotações de um Cinéfilo, para Contracampo e Cine Imperfeito e já foi públicado em revistas estrangeiras como The Film Journal e Rouge.

O ranking do mês de maio já está disponível no blogue da liga.

8 de jun. de 2005

RANKING

Com o final de junho, uma atualização nas listas de melhores e piores:



melhores do ano

1 (1) Mar Adentro, de Alejandro Amenábar
2 (2) Ninguém Pode Saber, de Hirokazu Kore-eda
3 (3) O Aviador, de Martin Scorsese
4 (4) Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira
5 (N) Star Wars: Episódio III - A Vingança dos Sith, de George Lucas
6 (5) Cabra-Cega, de Toni Venturi
7 (N) Old Boy, de Par Chan-Wook
8 (6) O Clã das Adagas Voadoras, de Zhang Yimou
9 (9) Constantine, de Francis Lawrence
10 (7) Reencarnação, de Jonathan Glazer

O melhor filme do ano ainda não apareceu: os quatro primeiros lugares estão num mesmo nível. Cabra-Cega, de que parece que apenas eu gostei, perdeu força com o tempo, mas Constantine ficou mais forte na memória. O novo Star Wars, muito bom, ganhou destaque e Old Boy, menos incensado que o de praxe por aí, também apareceu.



piores do ano

1 (1) Closer - Perto Demais, de Mike Nichols
2 (2) Contra a Parede, de Fatih Akin
3 (3) Em Busca da Terra do Nunca, de Marc Foster
4 (N) Cruzada, de Ridley Scott
5 (4) O Fantasma da Ópera, de Joel Schumacher
6 (5) O Chamado 2, de Hideo Nakata
7 (6) Eterno Amor, de Jean-Pierre Jeunet
8 (7) Herói, de Zhang Yimou
9 (8) Robôs, de Chris Wedge e Carlos Saldanha
10 (9) Desventuras em Série, de Brad Silberling

Closer, de longe, ainda é o pior filme do ano, mas Contra a Parede, com sua porrada romântica, é muito ruim também. Cruzada, que parece ter convencido muita gente boa, só não subiu mais na lista porque o número três é uma miséria mesmo.

Tributo


And here's to you, Anne Bancroft, I love you more than you will know... oh oh oh

7 de jun. de 2005

Resultado da enquete:
Qual o melhor vilão dos filmes do Batman?



41,27% Coringa (Jack Nicholson) (26 votos)
28,57% Mulher-Gato (Michelle Pfeiffer) (18 votos)
11,11% Christopher Walken (Max Schreck) (7 votos)
9,52% Joel Schumacher (diretor) (6 votos)
3,17% Pingüim (Danny De Vito) (2 votos)
3,17% Hera Venenosa (Uma Thurman) (2 votos)
1,59% Charada (Jim Carrey) (1 voto)
1,59% Bane (Jeep Swenson) (1 voto)
zero Duas-Caras (Tommy Lee Jones) (nenhum voto)
zero Mr. Freeze (Arnold Schwarzenegger) (nenhum voto)

Total: 63 votos.

6 de jun. de 2005

Personagem vide bula



Atenção para a história de Vera Drake, faxineira, dona de casa, mãe de dois filhos, que guarda um trabalho secreto: ajudar mulheres, em especial jovens, a abortar o bebê que não pediram aos céus. Na Londres de cinqüenta anos atrás, muito mais que criminosa, Vera Drake era uma vilã. Mas o problema é que a senhora Drake era também uma pessoa muito fofa, sempre disposta a um sorriso, querido, sempre pronta a cuidar de quem precisa. Do alto de suas cinco décadas, dona Drake não hesita em se ajoelhar para limpar aquela sujeirinha que não sai da lareira da patroa, que desce-escada- sobe-escada com a agilidade de uma garota, que resolve rápido como-quem-rouba a lavagem que livra as jovens da gravidez. Uma mulher dinâmica, sem dúvida.

Por isso, é meio estranho quando, descoberta sua atividade proibida, Vera Drake mal consegue falar, anda com dificuldade, precisa de apoio para se levantar da cadeira. Estranho para uma mulher muito mais ativa que o marido gente fina, o filho alfaiate meio bobão ou a filha com um grau de debilidade mental pequeno que lhe dá um ar inocente. Seria maniqueísmo? Primeiro temos a mulher boa, forte, decidida, simples. Depois, sua versão falível, chorosa, débil, coitada. Mike Leigh queria fazer um filme de defesa do aborto, é isso? Precisava apelar? Sua personagem não já seria suficientemente interessante por si só antes de ser vendida com bula indicando o modo como deve ser usada?

Imelda Staunton, quando não está imersa na cobra-que-morde-o-próprio-rabo do roteiro, está grande, mas de que vale uma (anti-)heroína que é imposta? As personagens que a circundam são inconsistentes: o romance improvável da filha com ex-soldado é um golpe dos mais baixos, o diálogo da amiga de Vera com uma futura cliente que traiu o marido foi escrito para apontar vilões. Aqui, não se trata de achar que defender o aborto é certo ou não. Esse tema é muito complexo. A questão é defender a personagem. Mike Leigh, que vinha de um filme tão lindo como Agora ou Nunca (2002), impõe sua vontade de forma tão ofensiva que estraga praticamente tudo. Não dá pra comprar Vera Drake.

O SEGREDO DE VERA DRAKE
Vera Drake, Grã-Bretanha, 2004.
Direção e Roteiro: Mike Leigh.
Elenco: Imelda Staunton, Richard Graham, Eddie Marsan, Anna Keaveney, Alex Kelly, Daniel Mays, Philip Davis, Lesley Manville, Sally Hawkins, Simon Chandler, Sam Troughton, Marion Bailey, Sandra Voe, Adrian Scarborough, Heather Craney, Jim Broadbent.
Fotografia: Dick Pope. Direção de Arte: Eve Stewart. Música: Andrew Dickson. Montagem: Jim Clark. Figurinos: Jacqueline Durran. Produção: Simon Channing-Williams. Site Oficial: O Segredo de Vera Drake.

nas picapes: Starman, Seu Jorge.

2 de jun. de 2005

Quando o cenário fala...



O Gabinete do Doutor Caligari é filme fantástico, em todos os sentidos da palavra. A realização de um longa-metragem com tamanha qualidade visual em 1919 é surpreendente. Além da reconhecida (e sempre surpreendente) excelência da concepção cenográfica, o filme já exibe um trabalho de iluminação muito bom, com um jogo de luz e sombras que viria a se tornar marca. A história também é ousada, com todas suas implicações psicológicas. A versão em DVD é a restaurada em 1996, com uma trilha mezzo eletrônica, que se associa com extrema eficiência ao filme.



Cubo, de Vicenzo Natali, perdeu todo o (leve) encanto pela estranheza nesta revisão. Apesar de partir de uma idéia curiosa, o filme morre quando tenta significar mais que diversão. A direção de arte é o melhor. Na verdade, a única coisa interessante. Os diálogos são impressionantemente mal escritos e a direção não permite timing aos (fraquíssimos) atores. Os minutos finais, com a hesitação de um dos protagonistas, nos presenteiam com uma pérola.


 
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