[f i l m e s d o c h i c o]

30 de jan. de 2003

O CLÁSSICO E O CONTEMPORÂNEO EM BRESSON



O cineasta francês é um ser mitológico. Tem que ser chato, metido a intelectual e existencialista. Robert Bresson nasceu no país certo. E escolheu a profissão exata. Essa é a impressão que se tem depois de assistir O Dinheiro (82), um de seus últimos filmes. A idéia, livremente inspirada em Dostoiévski, é boa: depois de receber uma nota falsa e tentar utilizá-la numa lanchonete, homem é confundido com um falsário, condenado e preso. E isso tudo o faz mudar sua atitude diante do mundo de forma radical.

Mas a crônica social pretendida por Bresson esbarra feio com o arquétipo que cria para contar sua história, cheia de lugares comuns e signos gastos, como torneiras abertas e copos caindo no chão. A realização estereotipada (e francamente chata) sofre com outro grave problema: o cineasta, em busca de um naturalismo pleno, só utiliza não atores nos seus filmes. Sem qualquer técnica, a maior parte do elenco deste filme naufraga em suas intenções. O protagonista parece um robô a cada dois passos. E como uma boa idéia não é tudo, O Dinheiro não se resolve.



A impressão inicial sobre Bresson se esvai ao assistir um filme realizado pelo cineasta vinte anos antes. O Processo de Joana D'Arc, uma de suas obras mais famosas, centra sua pouco mais de uma hora no julgamento da santa que terminou queimada na fogueira (espero que ninguém ache que isso é contar o fim da história). Realizado em preto e branco (como o clássico A Paixão de Joana D'Arc, feito por Carl Dreyer, em 1928), o filme explica seu contexto num longo letreiro inicial e parte para uma sucessão de cenas internas, muito limpas visualmente, onde Joana D'Arc é interrogada pela Santa Inquisição.

Mais uma vez, os atores não são profissionais, mas aqui isso não interfere na qualidade do filme. O duelo entre a verborrágica Joana e o bispo-chefe, que dura todo o tempo do longa, é feito com velocidade e texto inteligente. As intenções políticas de Bresson, claramente acintoso com os ingleses, se esvaem numa história bem contada, interpretada e dirigida. A opção pelo visual básico dos cenários, a ausência de cor e o pouco movimento da câmera destacam os atores e o texto. O filme se ergue pela palavra.

P.S.: a maior crítica de cinema norte-americana (pelo menos ela sempre acreditou nisso), Pauline Kael, pergunta: pra quê aquele cachorro? Eu realmente não sei responder.

O DINHEIRO
L'Argent, França, 1983
Direção e Roteiro: Robert Bresson, baseado no livro A Nota Falsa, de Leon Tolstói.
Elenco: Christian Patey, Vincent Risterucci, Caroline Lang, Sylvie van den Elsen, Béatrice Tabourin, Didier Baussy, Marc Ernest Forneau, Bruno Lapeyre, François-Marie Banier, Jeanne Aptekman.
Fotografia: Pasqualino de Santis e Emmanuel Machuel. Edição: Jean-François Naudon. Direção de Arte: Pierre Guffroy. Música: Bach. Figurinos: Monique Durry. Produção: Jean-Marc Henshoz e Daniel Toscan du Plantier.

O PROCESSO DE JOANA D'ARC
Procès de Jeanne D'Arc, França, 1962
Direção e Roteiro: Robert Bresson.
Elenco: Florence Delay, Jean-Claude Fourneau, Marc Jacquier, Roger Honorat, Philippe Dreux, Jean Gillibert, Michel Herubel, André Régnier, Arthur Le Bau, Marcel Darbaud, Paul-Robert Mimet, Gérard Zingg.
Fotografia: Lèonce-Henri Burel. Edição: Germaine Artus. Direção de Arte: Pierre Charbonnier. Música: Francis Seyrig. Figurinos: Lucilla Mussini. Produção: Agnès Delahaie.

29 de jan. de 2003

QUATRO VEZES BRESSON

QUATRO VEZES BRESSON



Uma conspiração silenciosa. Uma vingança calculada. Les Dames du Bois de Boulogne (45), de Robert Bresson (a partir do texto de Diderot), mostra um diretor contaminado pelo cinema que se fazia na França à epoca. As imagens do filme nos remetem a parte da cinematografia de Jean Renoir ou Marcel Carné, o clima onde os personagens estão envoltos nos leva a Jean Cocteau, autor dos belos diálogos da obra. Por sinal, Maria Casarès, a morte de Cocteau, é a protagonista deste filme. Protagonista perfeita: uma mulher que manipula as vidas de três pessoas pelo simples prazer da vingança. Sua interpretação é de raro equilíbrio entre a vilania e a suavidade. Casarès conduz o filme, dando-lhe um leve toque macabro. Filme que, apesar de se inserir no contexto do estudo de Bresson sobre o comportamento humano, parece à parte em sua filmografia, tomada por dramas com temática mais social.



É neste caso que se insere Ao Azar, Balthazar (67), filme que desperta os dois extremos da paixão. Ou o amam ou o odeiam. Bresson aqui se utiliza da história de um jumento, desde seu nascimento até sua morte, para mostrar as relações tumultuadas de uma garota com seus pais e seu amado sem escrúpulos. O sofrimento e a angústia de que os personagens são vítimas se cristalizam na figura do jumento Balthazar, que sofre todo o tipo de agressões em sua história. Bresson utiliza o animal como um espaço metafórico para mostrar como as pessoas conseguem se machucar. Uma premissa inteligente que perde a força pelo hermetismo do diretor, que arrasta o ritmo do filme e o torna quase que desinteressante.



Em Lancelot du Lac (74), o cineasta abandona a sociedade moderna para investir na lenda (e nas lamúrias da lenda, como não poderia deixar de ser). O filme mostra o tumultuado caso de amor entre a rainha da Inglaterra, Guinevere, e o mais importante dos cavaleiros de seu rei Arthur, Lancelot. Bresson anula a aventura e mergulha na discussão moral de seus personagens. O dilema do casal proibido e a conspiração que o cerca faz a narrativa navegar em direção oposta ao que se poderia esperar deste tipo de tema. O cineasta opta por abolir os confrontos. Eles são sugeridos e depois se mostram concluídos, com cavaleiros sagrando e animais mortos, em cenas estáticas. Para Bresson, é mais importante investigar o movimento do ser humano do que se movimentar.



Os olhos do protagonista de Pickpocket (59) são perfeitos: olhos mortos, sem expressão, vagando pelas ruas de Paris. A história do batedor de carteiras que não se consegue livrar de uma atração irresistível pelo ilícito, inspirada no Crime e Castigo de Dostoiévski, talvez seja a obra mais redonda de Robert Bresson. Todos os elementos da cinematografia do diretor estão aqui (discussão moral, análise do individual, negação da interpretação, cenografia limpa), mas o que torna encantador este longa-metragem é como Bresson parece se apaixonar por seu anti-herói e nos faz embarcar no seu mundo fascinante. As seqüências de roubo das carteiras, muitas e variadas, são impressionantes e delirantes. Em Pickpocket, o cineasta não deixa de elocubrar, mas o faz com graça e cadência.

LES DAMES DU BOIS DE BOULOGNE
Les Dames du Bois de Boulogne, França, 1945
Direção: Robert Bresson.
Roteiro: Robert Bresson, com diálogos de Jean Cocteau, baseados na novela Jacques le Fataliste et Son Maître, de Denis Diderot.
Elenco: Paul Bernard, Lucienne Bogaert, Blanchette Brunoy, María Casares, Marguerite De Morlaye, Yvette Etiévant, Elina Labourdette, Bernard La Jarrige, Lucy Lancy, Emma Lyonel, Jean Marchat, Nicole Regnault, Marcel Rouzé.
Fotografia: Philippe Agostini, Marcel Weiss e Maurice Pecqueux. Edição: Jean Feyte. Direção de Arte: Robert Lavallée. Música: Jean-Jacques Grünenwald. Figurinos: Schiaparelli e Grès. Produção: Raoul Ploquin.

PICKPOCKET
Pickpocket, França, 1959
Direção e Roteiro: Robert Bresson.
Elenco: Martin LaSalle, Marika Green, Jean Pélégri, Dolly Scal, Pierre Leymaire, Kassagi, Pierre Étaix, César Gattegno.
Fotografia: Léonce-Henri Burel. Edição: Raymond Lamy. Direção de Arte: Pierre Charbonnier. Música: Jean-Baptiste Lully. Produção: Agnes Dèlahaie.

AO AZAR, BALTHAZAR
Au Hasard Balthazar, França, 1967
Direção e Roteiro: Robert Bresson.
Elenco: Anne Wiazemsky, François Lafarge, Philippe Asselin, Nathalie Joyaut, Walter Green, Jean-Claude Guilbert, Pierre Klosowski.
Fotografia: Ghislain Cloquet. Edição: Raymond Lamy. Direção de Arte: Pierre Charbonnier. Música: Jean Wiener. Produção: Mag Bodard.

LANCELOT DU LAC
Lancelot du Lac, França, 1974
Direção e Roteiro: Robert Bresson, com história de Chrétien de Troyes.
Elenco: Luc Simon, Laura Duke Condominas, Humbert Balsan, Vladimir Antolek-Oresek, Patrick Bernhard, Arthur De Montalembert, Charles Balsan, Christian Schlumberger, Joseph-Patrick Le Quidre, Jean-Paul Leperlier, Antoine Rabaud, Jean-Marie Begar, Guy de Bernis, Philippe Chleq.
Fotografia: Pasqualino de Santis. Edição: Germaine Lamy. Direção de Arte: Pierre Charbinnier. Música: Philippe Sarde. Figurinos: Grès. Produção: Alfredo Bini, Jean-Pierre Rassam e François Rochas.


 
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